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Amor ou horror? Como evitar que o afeto pelo trabalho se torne um abuso

Pesquisadores descobriram que pessoas que adoram o que fazem correm um elevado risco de ser exploradas. Veja como evitar que a paixão o deixe cego

Por Tamires Vitorio
Atualizado em 3 abr 2020, 15h00 - Publicado em 3 abr 2020, 15h00
Em alguns casos, o famoso lema “Trabalhe com o que você ama e você não trabalhará um dia”, atribuído ao filósofo chinês Confúcio, parece ser uma falácia. (dolgachov/Thinkstock)
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Seu chefe precisa de alguém para fazer plantão nos fins de semana. Sua colega sai de licença-maternidade e você assume as tarefas dela — sem adicional nenhum no salário. Você muda de horário caso a empresa precise. Pega mais conduções para chegar à sede da empresa, que não para de mudar de endereço. Sai mais tarde quando vê um colega atolado de trabalho. Muita gente faz tudo isso com frequência. E não porque espere reconhecimento ou qualquer coisa do tipo, mas simplesmente porque ama a profissão que exerce.

Em alguns casos, o famoso lema “Trabalhe com o que você ama e você não trabalhará um dia”, atribuído ao filósofo chinês Confúcio, parece ser uma falácia. Se você ama o que faz, talvez o trabalho seja dobrado. Exatamente porque você se importa.

Foi isso o que descobriram professores americanos das Universidades Duke, Oregon e Oklahoma em uma pesquisa publicada em abril de 2019. Segundo o estudo, quando adoram suas tarefas, as pessoas tendem a sofrer mais abusos — e vivem um ciclo chamado de “exploração por paixão”.

Para chegar a essa conclusão, os estudiosos ouviram cerca de 2 400 professores e gestores. Os participantes afirmaram ser mais aceitável que indivíduos com uma profissão associada à paixão (como artistas ou assistentes sociais) trabalhassem mais horas sem remuneração extra do que os ocupantes de outros cargos (como contadores e vendedores de lojas).

Dia de 40 horas

Um dos comportamentos mais comuns de quem ama o que faz é ficar sobrecarregado. Isso acontece, simplesmente, porque esses profissionais sentem prazer no trabalho. “Fazemos 500 coisas ao mesmo tempo porque sentimos que ali é uma zona segura, percebemos que damos conta e fazemos daquilo nosso território”, afirma Pamela Magalhães, psicóloga clínica. “E a grande maioria dos que fazem o que gostam nem se dá conta de como está sendo sobrecarregada”, diz.

Foi exatamente o que aconteceu com Renata*, de 36 anos. “No lugar errado, amar o que faz é extremamente perigoso”, diz — mas a ficha dela demorou bastante tempo para cair. Ela atuou por 14 anos em uma holding educacional, onde foi contratada como coordenadora de imprensa. “Fiquei muito feliz. Eu era encantada com o grupo. Mas desde a primeira semana eu estranhei que todo mundo era solteiro, sem filhos. Então concluí uma coisa: eles moravam no escritório.”

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Não demorou para Renata fazer o mesmo. Ela não ia embora antes das 22 horas, mesmo tendo começado o dia às 9 da manhã. Acumular funções havia se tornado o novo normal. A princípio, ela assessorava apenas uma marca, que logo se tornaram três e, num piscar de olhos, dez. “Também organizava eventos, cuidava das redes sociais, tudo porque eu pensava: ‘Se eu não abraçar, ninguém vai fazer’. E fui me entupindo de trabalho”, diz.

A situação ficou pior quando Renata teve de organizar um evento de hackathon em 2016. A montagem começou em uma sexta-feira e ela deixou o local às 2 da madrugada. No dia seguinte, às 7 horas, já estava de pé, trabalhando. “Eram coisas insanas que eu fazia só pelo amor à camisa. Era muito natural. Eu não reclamava”, afirma. Depois de 24 horas seguidas trabalhando, uma colega passou mal e teve de ir embora. Renata continuou. O fim do evento estava marcado para as 2 horas da tarde do domingo, mas um problema com a eletricidade adiou o encerramento.

Renata ficou acordada trabalhando sem parar das 9 horas da sexta-feira até as 19h30 do domingo. O expediente, que deveria durar apenas 8 horas, já estava batendo a marca de 40. “Senti o dano quando acabou. Achei que estivesse bem para dirigir, quase bati o carro num ônibus porque não tinha mais reflexo. Cheguei em casa e fiquei alucinando mais de 3 horas. Foi aí que vi que havia algo de errado e que eu estava passando do ponto.”

O relacionamento abusivo com o trabalho só terminou com a demissão. Renata foi desligada da empresa depois de ter denunciado práticas ilegais de um novo chefe. “Foi quando percebi que o sentimento de lealdade era só da minha parte”, diz.

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Diagnosticada com burnout, depressão e distúrbio alimentar, a profissional ganhou mais de 30 quilos antes de deixar a empresa. Muitas vezes, pulava refeições para trabalhar mais. “Eu não era mais a minha prioridade, fui para o fim da fila porque a empresa estava em primeiro lugar, e em segundo estava minha família cobrando atenção. Agora entendi que eu sou a minha prioridade número 1.”

Cegos de paixão

Um dos grandes problemas do amor excessivo pelo trabalho — que se transforma facilmente em exploração — é o fato de o profissional ficar cego para os prazeres que podem surgir de outras esferas da vida. “Se sou artista e me pedem para fazer arte o tempo todo, posso até gostar disso, mas estão me tirando da minha família, dos meus amigos, das outras paixões que eu possa ter”, afirma Troy, da Universidade de Oregon.

A psicóloga Pamela completa: “É muito importante se dar conta de que você tem de tomar cuidado com quanta energia está gastando no trabalho, pois os demais setores também precisam de atenção”.

Essa cegueira impede a compreensão de que vários aspectos são importantes quando falamos de carreira — até mesmo o equilíbrio mental e o ganho financeiro. A paixão pelo trabalho pode ofuscar, inclusive, a percepção de que a empresa está exigindo demais e pagando de menos. “Quando gostamos muito do que fazemos, queremos tanto aquele trabalho que até abrimos mão do dinheiro”, diz Mônica Barroso, diretora de aprendizagem da The School of Life Brasil e coach.

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Mariana*, de 36 anos, sente isso na pele. Ela sempre sonhou em ser professora e conquistou seu objetivo ao ingressar em uma rede pública de faculdades técnicas do estado de São Paulo em 2016. Mas, por gostar da profissão, deixa que a instituição a explore. “Apesar da estabilidade do cargo, eu não tenho nenhum benefício nem hora extra e muitas vezes trabalho cerca de 12 horas por dia. Amo o que faço, mas isso está me prejudicando bastante, física e psicologicamente”, afirma.

Até os alunos pedem para que ela trace limites mais fortes em relação à empregadora. “Por gostar do trabalho, acabo aceitando qualquer tipo de exploração. Criei vínculos afetivos com meus alunos e colegas. Preciso aprender a dizer ‘não’ e a superar esse amor que eu sinto.”

Impor limites é um ponto crucial para encontrar o equilíbrio (veja outros no quadro ao lado), mas talvez a questão fundamental seja com­preen­der que nenhuma carreira vale a perda da saúde (física e mental) e da autoestima. Nesse processo de desintoxicação do trabalho abusivo, vale ouvir o conselho de Troy: “Não há justificativa para isso. As pessoas não precisam ser exploradas para se tornar bons profissionais”.

 

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*Os nomes foram alterados a pedido das personagens para preservar a identidade.

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