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Fobia financeira: entenda o medo patológico de lidar com dinheiro

O termo foi usado pela primeira vez em 2003. Hoje, ele é um tópico de discussão no mundo todo – especialmente no Brasil. Entenda de uma vez o problema.

Por Sofia Kercher | Design: Tamires Mazzo | Ilustração: Vini Capiotti | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 26 abr 2024, 14h24 - Publicado em 6 set 2023, 07h00
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 (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)
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m meados de 2003, Brendan Burchell, professor do departamento de sociologia de Cambridge, recebeu uma proposta que não pôde recusar. Um banco digital britânico chamado Egg encomendou uma pesquisa para tentar comprovar a existência de algo chamado “dislexia financeira” — problema que, segundo eles, causaria uma incapacidade de lidar com dinheiro.

Não era exatamente filantropia: a instituição estava fazendo uma campanha grande de marketing no Reino Unido, e queria usar os eventuais dados que surgissem para promover sua marca.

Burchell não era particularmente entusiasta da ideia, como contou à Você S/A. O convencimento veio na forma de libras: o banco oferecia um cheque generoso pelo serviço. Ele aceitou a proposta, e conduziu entrevistas com cerca de mil adultos no Reino Unido para ver se detectava a existência do problema.

Para a frustração do banco, ele não encontrou nada que desse para descrever como dislexia financeira. Mas a grana não foi em vão: Burchell acabou descobrindo outra coisa interessante.

Um quinto dos entrevistados apresentou sintomas negativos (psicológicos e físicos) quando tinham de gerenciar suas finanças – mesmo quando bem ajustados na carreira e nas relações pessoais. Metade deles tinha taquicardia nessas horas.

Tomadas por ansiedade, essas pessoas recorriam a táticas de evasão: não verificavam saldos bancários e, em casos extremos, jogavam boletos e extratos fora.

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Brendan Burchell detectou que 20% das pessoas apresentam sintomas como taquicardia na hora de lidar com dinheiro.

Naquele momento, não havia qualquer crise ou aperto econômico que pudesse justificar um comportamento financeiro disfuncional dos entrevistados. Inclusive, em 2003, o contexto macroeconômico do Reino Unido era de estabilidade. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 3,3% em comparação com o ano anterior. O FTSE 100, índice das principais ações da região, fecharia em alta de 13,6% no ano.

O professor apelidou o problema de “fobia financeira”. O termo agradou o banco Egg, que ficou com o crédito de ter financiado o levantamento, amplamente difundido pela imprensa britânica.

Entendendo a fobia

Vinte anos depois, Burchell já não quer mais saber do tema (nem o Egg, extinto em 2011). Mas o conceito de fobia financeira persistiu, e virou tópico de discussões entre educadores financeiros e psicólogos ao redor do mundo — principalmente no Brasil, do qual falaremos mais adiante.

Desde que o professor cunhou o termo, já temos mais informações sobre o problema. Dizemos “problema” e não “doença” porque a fobia financeira não está listada na Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS nem no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

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Primeiro, vamos destrinchar o termo. A palavra fobia vem do grego phobos, que significa “medo” ou “terror”. Na psicologia, quando uma pessoa é diagnosticada com uma fobia, significa que a ansiedade que sente em relação à circunstância é desproporcional ao perigo que ela representa.

Fobia financeira, portanto, seria o medo irracional daquilo que deriva do financeiro: pagar contas, abrir extratos, lidar com gastos.

É o que sente André Dias, dono de uma pizzaria em São Paulo. Ao falar sobre as contas que precisa pagar — e, sendo empreendedor, são muitas — ele mostra suas mãos, trêmulas e suadas. Esses são os sintomas comuns do problema: paralisia, sudorese, aceleração dos batimentos cardíacos e, em casos mais graves, ataques de pânico.

Sorte do André é ter a Ana, sua esposa. A advogada desenvolveu mecanismos para lembrar André de realizar os pagamentos com algum tempo de antecedência, para ele preparar o coração. “Deixo post-its na casa toda para lembrá-lo de pagar as contas. Às vezes deixo até no chão, na entrada da casa”, conta ela.

André não é o único, claro. Uma pesquisa encomendada pela XP em 2020 entrevistou 1.501 brasileiros com mais de 18 anos, e concluiu que quase metade deles se sentiam inseguros ao lidar com questões financeiras (bem mais do que os 20% encontrados pelo professor Burchell no Reino Unido). De acordo com o resultado, 40% sentem culpa e ansiedade com questões financeiras, e 21% evitam abrir boletos.

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21% dos brasileiros evitam abrir boletos.

Ainda, um levantamento global do Serasa Experian de 2021, feito com 3 mil indivíduos de 10 países, constatou que os índices de estresse financeiro do Brasil são maiores do que a média global em mais de 10 pontos percentuais.

Se tantas pessoas se sentem dessa forma, qual o impedimento para categorizar a fobia financeira oficialmente como um distúrbio mental? Isso não ajudaria as pessoas a identificar o problema com mais facilidade, e os profissionais a lidarem melhor com ele?

Para responder, é preciso levar em conta duas questões. A primeira é o nível de exposição à ameaça. Pegue a aracnofobia – o medo de aranhas. Basta bloquear o termo em suas redes sociais e não morar na Austrália (brincadeira à parte: quantas aranhas você vê no ano?). Ou a aerofobia, que é o medo de voar de avião e atinge 42% da população brasileira. Ela é mais inconveniente, mas são raros os casos de quem precisa voar com frequência.

Mas não dá para evitar a lida com dinheiro, ainda mais numa realidade em que só temos certeza de duas coisas: a morte e os boletos.

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Claro, há outras fobias que também não permitem uma vida funcional. Na fobia social, reconhecida pelo CID e pelo DSM, o fruto do medo irracional são interações sociais cotidianas que, assim como o dinheiro, são fundamentais para a vida.

Aí entramos numa segunda questão: as influências externas que geram o problema. Elas são a chave para entender o motivo pelo qual a fobia financeira não é (nem deve ser) classificada como uma doença — e o porquê de a discussão ser tão proeminente no Brasil.

Para entender melhor, vamos rebobinar 40 anos, em meio ao caos da hiperinflação.

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(Vini Capiotti/VOCÊ S/A) (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Cultura do endividamento

Ao longo dos anos 1980 e no início dos 1990, a inflação no Brasil chegou a superar os 80% ao mês. Em 1989, foram a 1.972% no ano. Em 1993, viria o pico: 2.477% (em 2022, para comparar, ela foi de 5,8%).

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Isso significa que as coisas quase dobravam de preço de um mês para o outro. Na prática, é aquela história que todo mundo viveu ou ouviu falar: assim que o salário caía, começava a corrida para ver quem conseguia chegar mais rápido às prateleiras e fazer as compras do mês. Os salários até subiam mensalmente, senão o país fechava as portas, mas era num ritmo menor que o da inflação – o negócio, então, era fazer as compras o mais
rápido possível.

A solução veio em 1994, com o Plano Real. Além de uma série de reformas econômicas, a moeda ficou atrelada ao dólar. Um real, no começo, valia um dólar. Com isso, a inflação voltou a níveis racionais. Em 1995, 22%. Em 1998, 1,6%.

Isso abriu as portas para o crédito. Com a inflação baixa, dava para vender produtos de forma parcelada – já que os preços se manteriam relativamente estáveis por meses a fio.

É importante dizer que, antes do Plano Real, o brasileiro não tinha muitas alternativas de compras parceladas. A maioria partia para o consórcio, uma espécie de poupança formada por pessoas que queriam adquirir um determinado bem no futuro. Esperava-se anos entre o pagamento da primeira parcela e a chegada do produto – um carro, um eletrodoméstico…

Após a implantação do real, isso mudou. Instituições financeiras deram ao brasileiro um amplo acesso ao crédito e, consequentemente, às parcelas. E a renda por aqui sempre foi baixa. Em 1995, por exemplo, 78% dos brasileiros ganhavam até R$ 300. Na época, um Gol 1.0 custava R$ 7.200. Uma geladeira Eletrolux, R$ 1.100. As parcelas, então, precisavam ser (muito) extensas. Quase tanto quanto a de um consórcio (modalidade que ainda existe, diga-se, mas com menos representatividade do que tinha no passado).

O ponto é que a cultura das parcelas a perder de vista foi substituindo a do consórcio, com a vantagem de que você sai com o produto na mão logo que desembolsa o pagamento número 1 (ou antes). Um estímulo extra para comprar. “O parcelamento é um acordo feito entre o varejo, a sociedade, o sistema financeiro e o governo para que as pessoas possam gastar”, define Carla Beni, economista e professora da FGV.

A abundância de crédito somada à ausência de educação financeira deu ruim. E hoje temos aquele dado apocalíptico do Serasa: 4 em cada 10 brasileiros adultos têm dívidas penduradas, que não conseguem pagar. Não à toa. No cheque especial, os juros anuais são de 150% ao ano, em média. No rotativo do cartão, que é o cheque especial on steroids, mais de 400%.

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(Arte/VOCÊ S/A)

Toda essa história forma uma bola de neve: a renda baixa (inclusive entre a classe média, na comparação com outros países) torna as parcelas quase que a única alternativa para a compra de bens duráveis (e às vezes nem tão duráveis). Elas vão se amontoando e metamorfoseiam-se em dívidas duras de pagar. Com o saldo no negativo, vem a armadilha dos juros bancários, extraordinariamente maiores que o do consumo. E aí danou-se.

“Muitas pessoas que me procuram para falar sobre fobia financeira são do Brasil. Nunca soube o porquê”, disse Burchell. Pois bem, professor. Sob o nosso cenário, parece difícil que o brasileiro médio não tenha taquicardia quando pensa em dinheiro.

É justamente por isso que a fobia financeira provavelmente não entrará para o CID ou o DSM. “Não é propriamente um problema psicológico. Trata-se frequentemente de uma realidade objetiva”, diz a psicóloga Vera Rita Ferreira, presidente da Associação Internacional de Pesquisa em Psicologia Econômica (Iarep).

Ou seja: por esse ponto de vista, a fobia financeira estaria para o medo durante uma queda de avião (algo objetivo) do que para o medo de avião em si (irracional).

O acúmulo de várias pequenas parcelas de crediários a perder de vista serve como gatilho para a fobia financeira.

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(Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Dinheiro como autocuidado

Independentemente da classificação oficial da coisa, o fato é que o medo de lidar com dinheiro é, sim, uma realidade para muita gente como o André, que mencionamos no início do texto. E que, a despeito de quem nasceu primeiro — a falta de dinheiro que levou à fobia ou a fobia que levou à falta de dinheiro —, só é possível resolver o problema enfrentando-o. E nem todo mundo terá uma Ana para colar post-its pela casa.

O lado bom é que dá para atacar a fobia financeira por dois ângulos: o econômico e o psicológico. Para os dois, existe uma máxima: aquilo que não se pode medir, não se pode melhorar.

Para Thiago Godoy, especialista em educação financeira, o primeiro passo é fazer um raio-x minucioso da sua situação e traçar uma estratégia para quitar suas dívidas de uma vez.

Para não deixar o problema escalonar novamente, o ideal é montar uma rotina financeira, incorporando aos poucos o costume de acessar saldos e extratos diariamente. “Lidar com dinheiro é uma forma de autocuidado. É como higiene”, diz Godoy. Então, ficar três dias sem entrar na sua conta bancária equivaleria a três dias sem escovar os dentes… Isso coloca as coisas em perspectiva.

Claro, algo assim só será possível quando você conseguir sentar e lidar com suas finanças sem passar por crises de ansiedade no meio do caminho. Para Celso Sant’Ana, psicólogo financeiro, é aí que entra a importância de uma terapia. Procurar ajuda profissional para entender de onde o problema surgiu (e ter ferramentas para controlar os sintomas) é essencial.

Sim, lidar com tudo isso parece assustador. E é mesmo. Especialmente por se tratar de dois assuntos ostracizados da mesa de jantar brasileira: situação financeira e saúde mental.

De qualquer forma, o mais importante é entender que não falar sobre os problemas não vai fazer com que desapareçam — os tornará maiores. Não há nada de deselegante nem de vergonhoso em ser honesto sobre suas finanças, discuti-las com amigos e parentes, e buscar ajuda profissional quando elas afetarem seu corpo e sua mente. Afinal, pelo que os estudos indicam, essa sensação é muito mais comum do que parece.

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