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Jogue limpo, mas vença

A Dell começou como um pequeno negócio, e agora é a terceira maior produtora de PCs do mundo. A trajetória é recontada na autobiografia de Michael Dell.

Por Bruno Carbinatto
8 jul 2022, 06h09
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 (Arte/Foto: Getty Images/VOCÊ S/A)
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A Dell é a terceira maior produtora de computadores pessoais do mundo, com 17,7% do mercado global. Está atrás apenas da Lenovo (23,6%) e da HP (20,5%), e tem quase o dobro da próxima colocada, a Apple (9%).

Quem diria que tudo isso viria de um pequeno negócio iniciado pelo jovem universitário Michael Dell, em 1984? Na época, computadores pessoais eram uma raridade – e quem precisava utilizá-los não sabia muito bem o que procurar.

O que o jovem fazia era vender PCs diretamente para o consumidor final, de forma personalizada. Ele comprava-os e fazia upgrades para revendê-los, ou então montava-os do zero, peça por peça, para satisfazer a necessidade do cliente.

Deu tão certo que apenas quatro anos depois, em 1988, a empresa abriu seu capital na bolsa com um valor de mercado de US$ 85 milhões (US$ 210 milhões atuais). Em 1992, ele se tornaria, aos 27 anos, o CEO mais jovem das empresas listadas na “Fortune 500”.

O crescimento acelerou, mas bateu numa parede na década de 2010. A popularidade dos smartphones tirou atratividade do mercado dos PCs (todo mundo seguiu tendo computador, claro, mas passou a trocar de celular com frequência, não de PC). Nisso, os lucros caíram, os papéis despencaram e os acionistas começaram a chiar.

A solução que Michael Dell arrumou foi radical: decidiu fechar o capital da empresa, comprando ele mesmo suas ações, em sociedade com a companhia Silver Lake Partners.

Deu certo, e, após uma retomada de rumo, a Dell (D1EL34) reabriu seu capital em 2018.

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Toda essa trajetória é recontada pelo próprio Michael Dell em sua autobiografia Jogue limpo, mas vença. No trecho a seguir, ele narra os primeiros passos do negócio.

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Capítulo 4 Dando a partida

No verão de 1983 eu tinha tempo de sobra. Muito tempo. Era uma novidade para mim.

Alguns jovens têm folga no verão depois de se formar no ensino médio. Ganham dias livres para se divertir antes de começar a faculdade e dar início, de fato, à vida adulta. Garotos que eu conhecia da Memorial High passaram boa parte daquele verão indo a San Marcos para flutuar com boias no rio.

Como você provavelmente já adivinhou, esse não era o meu estilo. Não que eu fosse avesso à diversão; apenas tinha uma ideia de lazer diferente da que era comum na maioria dos garotos da minha idade.

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Naquele ano não tive um trabalho de verão propriamente dito. Aos olhos dos outros (e até onde meus pais sabiam), eu estava à toa, era um calouro da Universidade do Texas indo e vindo de Houston e meu novo apartamento em Austin a bordo do meu lindo BMW branco – um belo carro para dirigir acelerando, algo que eu adorava fazer.

Mas havia outro carro muito mais adequado ao negócio que eu havia começado. Ou melhor, negócios, no plural.

O carro tinha sido repassado dos meus pais para mim: um Cadillac cupê DeVille 1978 – marrom, com teto de vinil combinando, muito classudo. Um enorme pedaço de ferro de Detroit, de uma época em que Detroit se orgulhava de fazer carros grandes. Eu o dirigia como se fosse um superbarco – não era exatamente ágil, mas muito estável. Esqueça a economia de combustível: aquele barco consumia galões por quilômetro.

Por que eu me incomodaria com aquele carro grande e velho, um veículo que poderia constranger a maioria dos caras de 18 anos, quando tinha um BMW novo? (Sem mencionar que marrom era a cor da antiga rival da Universidade do Texas, a Texas A&M.)

Eu adorava aquele Cadillac porque ele era grande.

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Eu ainda estava incrementando os PCs da IBM. Ainda comprava drives de disquete, discos rígidos e chips de memória e os instalava nos IBM básicos que eu comprava no varejo. Em seguida, vendia com lucro os computadores mais potentes para médicos, advogados e arquitetos. Assim que cheguei a Austin coloquei pequenos anúncios no jornal local e logo comecei a atender novos clientes, o que me forneceu o capital de giro necessário para comprar mais PCs e suprir uma demanda que me parecia crescente. E aquele cupê DeVille era muito conveniente para transportar o estoque bruto necessário para o trabalho de incrementar os PCs da IBM, que vinham em caixas imensas. No enorme porta-malas cabiam três “monstrengos” daqueles. No banco de trás, depois de empurrar o banco dianteiro ao máximo, inclinar o encosto para a frente (no DeVille não havia portas traseiras) e espremer cada caixa, cabiam quatro. Outras duas podiam ser empilhadas no banco do carona.

Tenho certeza de que eu proporcionava uma visão curiosa quando percorria a Interestadual 35: um garoto de bochechas gorduchas com cabelo encaracolado e óculos escuros ao volante de um Cadillac gigantesco, cheio de caixas enormes, com a traseira quase tocando o asfalto sob o peso de todos aqueles computadores.

E ainda havia o outro negócio. Os PCs da IBM vendiam loucamente desde o instante em que foram lançados, mas a demanda gigantesca provocou disparidades de suprimento entre as lojas de varejo que vendiam o produto. Houston podia encomendar 10 mil unidades, Dallas, mais 10 mil, Phoenix, outras 10 mil. Mas a IBM não conseguia fornecer todo esse suprimento a tempo, de modo que alguns desses revendedores acabavam recebendo apenas 4 ou 5 mil unidades de cada vez. Em resposta, os revendedores começaram a aumentar o número de pedidos – 20 mil, 50 mil de uma vez – para garantir a quantidade de que precisavam. O resultado foi um caos no varejo: havia cidades com excesso de estoques, outras com falta.

Aproveitei muito bem essa confusão no mercado.

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Não sei se àquela altura eu já conhecia a palavra arbitragem, mas o conceito – ou seja, que eu poderia ganhar algum dinheiro a partir dessas incongruências de suprimento – me veio num clarão. Percebi que só precisava ir a uma cidade que tivesse excesso de PCs, comprar alguns, levá-los para outra cidade onde houvesse escassez e vendê-los. Parece simples? Realmente era.

Assim começaram as viagens de compra e venda. Eu localizava um varejista que tivesse comprado um número excessivo de PCs da IBM, digamos, uma ComputerLand em Phoenix, telefonava para lá e perguntava se poderia comprar alguns. Para a loja era um ótimo negócio – tão bom que em muitos casos os lojistas concordavam em vender alguns por um preço abaixo do custo. Eu pegava um voo da Southwestern Airlines para Phoenix, alugava um caminhão grande – naquela época, acredite ou não, isso era permitido a um garoto de 18 anos – e ia à ComputerLand. Lá, entregava um cheque ao portador, colocava os trinta ou quarenta PCs no caminhão e dirigia até uma loja onde houvesse falta de máquinas, digamos, uma Businessland em Tucson, e vendia a carga inteira por 50, 70 ou 80 dólares a mais do que havia pagado por unidade.

Resultado: lucro instantâneo de 2 mil dólares. Talvez você esteja fazendo um cálculo mental: um garoto de 18 anos que não estivesse traficando drogas tinha realmente 50 ou 60 mil dólares para pagar por aqueles computadores?

A resposta é sim. Meu negócio de incrementar PCs estava indo tão bem a ponto de eu ter um fluxo de caixa constante. E a revenda de computadores foi lucrativa desde o início. Depois de um tempo descobri que podia transportar caixas grandes a um preço muito barato pelos ônibus Greyhound. Assim, se estivesse arbitrando entre lojas de computadores dentro do Texas, podia mandar um cheque para um lojista em San Antonio que tivesse PCs em excesso, pedir que ele levasse os computadores à estação de ônibus e os despachasse num Greyhound. Depois, eu mesmo os pegava em Dallas, Houston ou Austin e os levava a uma loja que estivesse precisando de computadores. Se houvesse mais do que cinco ou dez, eu chamava um colega e dizia:

– Ei, quer me ajudar em um negócio e ganhar um dinheiro?

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O colega trazia seu carro e me ajudava.

Assim o verão passou. Não fui me divertir em San Marcos, mas ganhei um bom dinheiro.

Então começaram as aulas na faculdade. Em teoria, eu era um estudante de medicina na Universidade do Texas, a caminho de me tornar o médico que meus pais queriam que eu fosse. A realidade, porém, era um tanto diferente.

Quando o primeiro semestre começou, em agosto de 1983, eu estava comandando um negócio próspero em meu apartamento em Austin. Meus PCs da IBM cirurgicamente alterados vendiam quase tão depressa quanto eu conseguia incrementá-los. O apartamento estava atulhado até o teto com computadores e caixas de máquinas, periféricos e parafernálias: discos rígidos, drives de disquete, chips de memória, placas-mãe e ferros de soldar.

[…]

Passei a frequentar a faculdade. Sentado na aula de biologia ou química orgânica, ouvia o professor falando sem parar, fazia algumas anotações obedientemente, mas olhava pela janela e pensava em quando voltaria para o que me interessava de fato.

Os anúncios que eu publicava nos jornais caíram na boca dos usuários de computadores mais experientes em Austin. Médicos, advogados e arquitetos continuavam a me contratar para modificar seus PCs. Além disso, eu fazia alguns negócios com faculdades menores na área. Lembro que a Southwestern University, em Georgetown, cerca de 30 quilômetros ao norte da cidade, comprou uma dúzia de máquinas comigo. Fui até lá pessoalmente entregá-las e configurá-las.

Uma observação interessante é que não vendi nenhum computador para estudantes. Jamais. Os alunos da UT, pelo menos os que eu conhecia, não sabiam nada sobre computadores e não se importavam com eles. Era uma época muito diferente.

Descobri que a três quarteirões do campus havia um escritório onde o estado do Texas publicava licitações. Digamos que o Departamento de Estradas precisasse de quatro PCs com tais e tais especificações. Alguém de lá ia a esse escritório de licitações e fazia um pedido de propostas, que eram públicas. Assim, qualquer pessoa (como eu) podia entrar e dizer:

– Gostaria de ver todas as licitações de equipamentos em tais e tais categorias.

E esse escritório entregava os papéis aos interessados. Nada era eletrônico – eram folhas físicas. Eu voltava ao apartamento e analisava todos os pedidos, jogando fora os que não tinham a ver com minha expertise. Examinando os que restavam – e não eram apenas de computadores incrementados; havia também kits de memória, disco rígido e placas de I/O (input/output), acessórios que maximizavam a funcionalidade de um computador –, eu calculava por quanto podia vender cada um deles para vencer a licitação e ainda ter lucro. Então escrevia à mão as propostas, voltava de bicicleta ao escritório e as entregava.

Nenhum desses contratos era muito grande, mas comecei a ganhá-los, o que se somou aos meus outros negócios que já eram bons. Logo minha receita bruta oscilava entre 50 e 80 mil dólares por mês. Pode parecer impressionante, mas eu estava gastando quase cada centavo em estoque novo. 

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(Arte/VOCÊ S/A)
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