“Como líder, não se pode ficar correndo de um lado para outro do navio”, diz Alex Ferguson, ex-técnico do Manchester United
Um dos técnicos mais respeitados do mundo, Alex Ferguson lança livro sobre liderança e mostra como se tornar um chefe admirado
Se existe um técnico de futebol que é reverenciado por jogadores e torcedores de todo o mundo, é o escocês Alex Ferguson. Centroavante quando era jogador, ele teve uma carreira impressionante no banco de reservas: foram 38 anos como treinador – 27 à frente de um dos maiores times do mundo, o Manchester United. Em sua trajetória na equipe inglesa, Ferguson conquistou 38 troféus (entre eles dois da Liga dos Campeões) e revelou jogadores que se tornariam craques internacionais, como Cristiano Ronaldo e David Beckham. Agora, três anos depois de se aposentar, o treinador usa toda a sua experiência de gestão de equipes para lançar o livro Liderança (Intrínseca, 49,90 reais), escrito ao lado de Michael Moritz, presidente da Sequoia Capital, e outro expert no tema. Na obra, Ferguson explica quais são os ingredientes que fazem com que os times se tornem vencedores, mostra por que os líderes são tão importantes na condução dos liderados para o sucesso e explica, com exemplos pessoais, como se tornar um treinador admirado. A seguir, leia um trecho de Liderança.
Trecho do livro
Inspiração
Não se consegue extrair o melhor das pessoas com surras de chicote. Isso se faz conquistando o seu respeito, fazendo com que se acostumem com o triunfo e convencendo-as de que são capazes de melhorar seu desempenho. Não consigo pensar em nenhum treinador que tenha sido bem-sucedido por algum período com um reino de terror. Acontece que as palavras mais poderosas de um idioma são: “Bom trabalho.” Grande parte da liderança consiste em extrair de cada um aqueles 5% extra de desempenho que as pessoas desconhecem ter.
Era sempre importante que os jogadores apagassem da mente a memória da temporada anterior, tivéssemos vencido ou perdido. Se tivéssemos nos saído bem no último ano, isso não necessariamente garantiria que nos daríamos bem outra vez. E, se tivéssemos perdido, eu não tinha interesse em prolongar qualquer ressaca de derrotismo. A comissão técnica — em particular a equipe de ciências do esporte — me procurava com novas ideias antes ou durante a pré-temporada, mas eu nunca fazia uma reunião para ficar remoendo o passado com os jogadores. Costumava reuni-los ao meu redor em um semicírculo no campo de treino e enfatizava o meu desejo de vencer, usando isso como uma oportunidade para estabelecer expectativas. Perguntava aos mais experientes, que já tinham começado a adquirir o gosto do Manchester United pela vitória, quantas medalhas haviam ganhado. Dizia-lhes que não poderiam se considerar atletas do Manchester United até terem conquistado dez medalhas. Lembro-me de ter dito a Rio Ferdinand que ele não poderia se considerar um jogador do Manchester United até ter alcançado o nível de Ryan Giggs. É claro que essa era uma missão impossível.
É muito mais fácil fazer coisas difíceis quando os outros gostam de você. Embora nunca tenha almejado a popularidade, sempre tentei dar uma atenção particular às pessoas no Manchester United — ou dos outros clubes com que me envolvi — que trabalhavam nos bastidores e eram os nossos heróis anônimos. E isso não era algo forçado e falso; simplesmente parecia a coisa certa a fazer. Essas pessoas não recebiam salários multimilionários nem aplausos do público; não usavam relógios Patek Philippe ou dirigiam Bentleys. Algumas — a equipe da lavanderia, os funcionários do estádio, os garçons — iam trabalhar de ônibus. Eles eram os sustentáculos do clube. Alguns permaneceram por mais tempo no Manchester United do que Ryan Giggs. De certo modo, eles são o equivalente no clube ao funcionalismo público — duram mais do que o governo e, no Manchester United, mantinham a continuidade e uma conexão com a nossa tradição.Para mim era muito fácil ter afinidade com eles, já que a maioria tinha origens parecidas com a minha.
Alguns técnicos tentam ser populares entre os jogadores e se tornar um deles.
Isso nunca dá certo. Como líder, não é preciso ser amado — ainda que de vez em quando seja útil ser temido. Entretanto, acima de tudo, é preciso ser respeitado. Há alguns limites naturais que, quando cruzados, tornam a vida mais difícil. Quando eu jogava no Rangers, eles contrataram um novo treinador, David White. Ele era jovem e um bom homem, mas não estava à altura. Além de se sentir intimidado pelo clube, ele vivia sob a sombra de Jock Stein, do Celtic. Os jogadores não tinham muito respeito por ele — em parte porque ele tinha muita intimidade com os rapazes. O mesmo aconteceu no Manchester United quando Wilf McGuinness sucedeu Sir Matt Busby, em 1969. Wilf tinha muitas coisas contra ele. Estava ocupando o lugar de uma lenda; tinha apenas 31 anos e nenhuma experiência como técnico. Contudo, o pior era o fato de ele comandar um grupo de homens com quem havia jogado. Era uma posição impossível para ele. O meu predecessor imediato no Manchester United, Ron Atkinson, teve um problema parecido. Ele havia tido muito mais sucesso como técnico do que Wilf, mas também escolheu fraternizar com os jogadores. Isso realmente não funciona. Um líder não é um dos comandados.
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É vital manter certa distância. Ela pode ser expressa de maneiras simples, porém significativas. Por exemplo, eu costumava me sentar na frente do ônibus do time. Os jogadores compreendiam essa distância e, ao fim da temporada, quando davam suas festas, eu nunca era convidado. Convidavam toda a comissão técnica, mas me deixavam de fora. Isso não me ofendia. Eles estavam certos. Com uma exceção no Aberdeen, nunca fui ao casamento de um jogador. Havia uma linha que eles não estavam preparados para cruzar, e eles respeitavam a minha posição. Isso sem dúvida facilitava as coisas, porque, como técnico, não se pode ser sentimental em relação aos jogadores. Certa vez, Jock Stein me disse: “Não se apaixone pelos jogadores, porque eles vão traí-lo.” Isso pode soar um pouco rígido, mas Jock estava certo ao dizer que não podemos criar laços com aqueles que trabalham para nós. Só se pode ter esse tipo de ligação quando eles estão com problemas — quando precisam do seu conselho. Perdi a conta das vezes que ajudei jogadores com problemas pessoais e tenho orgulho por eles terem confiado em mim a ponto de saber que nossas conversas morreriam comigo. Nessas situações, eu agia como um padre, um pai ou advogado — o que quer que fosse necessário para resolver o problema. Mesmo hoje, muitos ex-jogadores me pedem conselhos; isso reflete a confiança que era a base do nosso relacionamento.
Quando os jogadores ficavam mais velhos, eu não podia me dar ao luxo de ser gentil com eles à custa do clube. Todas as evidências estão no campo de futebol. Ele não mente. Precisei tomar muitas decisões terríveis e tive de ser implacável. Nunca esperei que os jogadores me amassem, mas também não queria que me odiassem, porque então teria sido impossível extrair o máximo deles. Tudo que eu queria era que me respeitassem e seguissem as minhas instruções. A não ser que você entenda as pessoas, é muito difícil motivá-las. Aprendi isso anos atrás na Escócia, quando recebi uma lição de um jovem. Quando eu treinava o Aberdeen, costumávamos viajar para Glasgow toda quinta-feira à noite para treinar meninos num campo de grama sintética para identificar os melhores jovens talentos. Eu estava lá certa noite, usando meu casaco com as iniciais “AF”, quando vi um menino de uns oito anos fumando um cigarro. Eu disse:
— Largue esse cigarro, filho. O que seu pai pensaria se o visse fumando?
O menino me olhou e retrucou:
— Vá se f*!
E então se afastou. Meu auxiliar técnico, Archie Knox, que estava comigo, morreu de rir do modo como o garoto havia acabado comigo. Acontece que, ao refletir sobre o incidente, percebi que não sabia nada sobre o menino. Eu não fazia ideia de onde ele vinha, de como eram seus pais, se havia sido provocado pelos colegas ou por que alimentava tanta raiva. A não ser que se saiba esse tipo de coisa e se compreenda a personalidade da pessoa, é impossível tirar o máximo dela. Antes de contratarmos jogadores, em especial os mais novos, eu sempre tentava entender as circunstâncias em que haviam crescido. Os primeiros dez ou doze anos da vida de um indivíduo têm uma influência profunda em quem ele será na vida adulta.
Outro ingrediente crucial da motivação é a consistência. Como líder, não se pode ficar correndo de um lado para outro do navio. As pessoas precisam sentir que você tem uma confiança inabalável em uma abordagem específica. Se não puder demonstrar isso, você perderá a equipe muito rápido. No futebol há uma expressão para isso: quando os jogadores “não jogam para o técnico”, o que já presenciei umas mil vezes. Depois que isso acontece, o técnico pode se considerar derrotado, pois fracassou na sua principal tarefa: motivar os jogadores a seguirem-no. O momento para ser inconsistente é quando ajustes precisam ser feitos para acompanhar as mudanças no mundo. Sempre que as coisas não iam bem, havia a tentação de mudarmos de estratégia. Isso não funciona. Às vezes, quando perdíamos algumas partidas, ouvíamos que os jogadores achavam que os treinos deveriam ser mais descontraídos; que os nossos resultados melhorariam se, em vez de nos concentrarmos durante os treinos nos fundamentos técnicos, jogássemos partidas. Sempre me recusei a aceitar essas sugestões. Numa manhã de domingo, todo parque está cheio de pessoas em playgrounds, praticando atividades esportivas em grupo ou jogos típicos de bar, mas isso não faz delas jogadores de futebol melhores. Acredito que a dedicação contínua ao aperfeiçoamento das habilidades técnicas e da tática leva a resultados melhores e não estava disposto a mudar só para satisfazer temporariamente os outros.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 216 da revista Você S/A e pode conter informações desatualizadas
Você S/A | Edição 216 | Julho de 2016