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A cooperação silenciosa do livre comércio

Milton Friedman, Nobel de Economia, já dizia que é impossível produzir um lápis sequer sem MUITO comércio internacional. Entenda.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 5 abr 2022, 07h11 - Publicado em 11 mar 2022, 06h13
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 (Bureau Nz Limited/Getty Images)
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Em 1991, turistas alemães encontraram uma “múmia natural” nos alpes de Ötztal, fronteira da Itália com a Áustria. Era o corpo de um homem que viveu há 5.300 anos, na pré-história europeia, completamente preservado pelo gelo. E que se revelaria uma joia da arqueologia. Nosso amigo neolítico, que ganhou o apelido de Ötzi dos cientistas que o examinaram, vestia calças de couro justas, bem costuradas, de couro de cabra. Tinha um casaco de couro de ovelha, feito a partir da pele de quatro animais diferentes (dá para saber disso analisando o DNA do couro). Na cabeça, um chapéu de pele de urso. Nos pés, um sapato com cadarços, de couro de bezerro. E carregava uma machadinha de cobre, metal que, sabe-se hoje, era minerado 600 quilômetros ao sul, na Toscana, região central da Itália.

Esse conjunto mostra que mesmo a pré-história abrigava um comércio pujante. Era basicamente impossível que Ötzi criasse ovelhas, cabras e gado, fosse um costureiro exímio, capaz de produzir no braço calças e sapatos apropriados para temperaturas abaixo de zero, e, de quebra, tivesse minerado cobre na Toscana para forjar seu machado.

Não. Tudo o que ele vestia e carregava no dia de sua morte provavelmente foi fabricado por gente especializada, muitas vezes de lugares distantes.
Enquanto Ötzi dava seus últimos passos pelos alpes, longe dali, na Suméria, inaugurava-se a Idade do Bronze. Esse metal é uma liga de cobre e estanho, bem mais resistente que o cobre puro, e foi o salto tecnológico que nos tirou de vez da Idade da Pedra. A Suméria ficava onde agora está o sul do Iraque. A fonte de estanho mais próxima localizava-se 700 quilômetros ao norte, no atual Irã. A de cobre, 1.200 quilômetros ao sul, pelo mar, nos Emirados Árabes de hoje. Ou seja: sem uma rede ampla de comércio entre povos distintos não haveria Idade do Bronze. Não haveria civilização.

Milton Friedman (1912-2006), Nobel de Economia, dá um exemplo impecável. “Olhe para este lápis”, ele diz. “Não existe uma única pessoa no mundo capaz de produzir este lápis sozinha. A madeira, até onde eu sei, veio de uma árvore que foi cortada no estado de Washington. Para cortar a árvore, foi necessária uma serra. Para fazer a serra, foi preciso aço. Para produzir o aço, minério de ferro. O grafite vem de minas na América do Sul. A borrachinha em cima, da Malásia…”

Ele arremata: “Milhares de pessoas colaboraram para produzir este lápis. Gente que não fala a mesma língua, que pratica religiões diferentes, que talvez odiassem umas às outras se um dia se encontrassem. Mas elas trabalharam juntas de alguma forma, para que você pudesse ter um lápis. A um preço irrisório.”

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É isso. O comércio nos tornou uma espécie interconectada. Um formigueiro não precisa de outros formigueiros. Se todos deixarem de existir, menos um, as formigas que restaram seguirão seu dia a dia como se nada tivesse acontecido. Humanos não. Devemos nossas roupas, nossos lápis, nossa internet a gente espalhada pelo mundo.

Um iPhone, o objeto que os arqueólogos do futuro encontrarão nos nossos bolsos caso alguns de nós acabe preservado no gelo por 50 séculos, tem componentes fabricados em mais de 40 países, de seis continentes. Se tudo o que restar da civilização atual for um único iPhone, o pessoal lá na frente talvez imagine que o mundo de hoje vivia em plena paz.

Infelizmente será uma conclusão errada. Seguimos tão violentos quanto nos tempos de Ötzi (que morreu com uma flechada nas costas). A cooperação silenciosa do livre comércio, porém, é mais do que a força motriz do progresso. É o melhor esboço que temos da utopia de um mundo ideal.

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