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Cosméticos à base de cannabis: um mercado a todo vapor

Lá fora, nomes como Avon e Tresemmé já criaram linhas com canabidiol – derivado da maconha com supostas propriedades cosméticas. No Brasil, a substância segue proibida para uso não-medicinal, mas a indústria busca alternativas para não perder a onda.

Por Monique Lima
Atualizado em 26 abr 2021, 11h29 - Publicado em 5 abr 2021, 08h00
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 (Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)
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Texto: Monique Lima | Ilustração: Felipe Del Rio | Design: Tiago Araujo | Edição: Alexandre Versignassi

Era 1998. A marca britânica de cosméticos The Body Shop lançava a linha Hemp Hand Protector, um hidratante para mãos à base de Cannabis sativa (nome científico da planta de onde sai a maconha) e passou a distribuir para suas filiais na Europa. Até que tentaram proibir a venda do produto.
O cultivo de cannabis estava legalizado no Reino Unido desde 1993. O que não podia era fazer drogas com ela. Outras coisas, tudo bem. Logo, não havia nada de ilegal na produção da linha da The Body Shop. Em termos históricos, vale salientar, a anomalia era a proibição.

A cannabis sempre foi uma boa matéria-prima para tecidos de fibras longas. As velas dos antigos navios da Marinha Real Britânica eram feitas de cânhamo. As dos navios da frota de Pedro Álvares Cabral também.

“Maconha”, aliás, é um anagrama de “cânhamo”, o nome da cannabis em português. No século 19, os fumadores de cânhamo chamavam sua droga de “mocanha”, migrando a sílaba final para o início da palavra, para não chamar atenção – a primeira lei proibindo a erva no Brasil data de 1830.
Bom, com mais uma rodada de troca de letras na gíria de rua, “mocanha” virou “maconha”.

Os plantadores, porém, sempre diferenciaram por seleção artificial os tipos de cânhamo que produzem muito THC (o ingrediente psicoativo da planta) dos que produzem pouco, melhores para fibras. Tanto que, hoje, chama-se “cânhamo” a versão da planta com níveis de THC próximos de zero, e de “maconha” mesmo a versão cheia do psicoativo – em inglês, cânhamo é hemp, e a droga, weed, pot, marijuana.
Mas sabe como é. A partir da década de 1930, o cultivo de cannabis já estava proibido planeta afora – não interessava se o plantio era para a produção de maconha ou de fibras de cânhamo. Entre os países ocidentais, a única exceção foi a França, onde o cultivo para a produção de fibras nunca foi proibido.

Ironicamente, foi justamente lá que a The Body Shop teve problemas. Policiais fizeram uma batida numa loja deles em Aix-en-Provence para apreender os produtos. Justificativa: a linha Hemp faria apologia ao uso da planta como droga. A The Body Shop manteve a linha mesmo assim.
Foram proféticos. Hoje, com a flexibilização global em relação ao plantio e ao uso de derivados da cannabis, mais de 30 países produzem cânhamo livremente – cânhamo, veja bem; o plantio de maconha mesmo, weed, para uso recreativo, só está liberado em três países: Uruguai, Canadá e Estados Unidos (em 15 dos 50 Estados). Hoje considera-se que o cânhamo, hemp, é a versão da cannabis com menos de 0,3% de THC. É essa que está liberada em larga escala (Brasil não incluído).

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(Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)
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E é ela o assunto da nossa reportagem. Não exatamente ela, já que fibras têxteis também não são o tema aqui. Nosso protagonista é um derivado não psicoativo do cânhamo: o canabidiol, ou CBD.

O CBD é um óleo com propriedades terapêuticas reconhecidas. Certos remédios feitos a partir dele foram legalizados para aplacar sintomas de algumas doenças, como o autismo severo e a epilepsia. Quando você ouve o termo “uso medicinal da maconha”, geralmente estão falando de
CBD – ainda que de forma etimologicamente incorreta, o certo seria “uso medicinal do cânhamo”, a maconha sem maconha, como diria Rogerinho, do “Choque de Cultura”.

Mas não é só na medicina que o CBD tem chamado a atenção. Com a abertura para o cânhamo e para os remédios à base de canabidiol, vários gigantes da indústria seguiram a trilha aberta há mais de 20 anos pela The Body Shop e passaram a produzir cosméticos com CBD, principalmente nos EUA.

Diversas marcas de peso aderiram ao canabidiol em suas fórmulas: a Kiehl’s, da L’Oreal; a Tresemmé, da Unilever; e a Avon, da brasileira Natura, com o óleo facial Green Goddess.

Virou moda. A loja de departamentos de luxo americana Barneys inaugurou em 2019 a The High End, uma loja dedicada a cosméticos de CBD. E a influencer Kourtney Kardashian fechou uma parceria entre a marca de cosméticos Hora e sua grife Poosh’s, para a produção de um sérum facial com infusão de CBD.

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Mas e aí, funciona mesmo?

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(Felipe Del Rio/VOCÊ S/A)

Sistema Endocanabinoide

Vários estudos indicam que o CBD é eficiente para retardar o envelhecimento da pele e controlar enfermidades cutâneas, como psoríase, acne e rosácea.

A dermatologista Juliana Piquet, de qualquer forma, alerta: as pesquisas ainda são rasas, com poucos ensaios clínicos, e é necessário mais aprofundamento para entender os benefícios reais do uso de CBD em cosméticos. “Mas existe, sim, um potencial enorme no uso de CBD nesses produtos, porque nosso corpo possui o sistema endocanabinoide, que reage com o canabidiol, e desencadeia várias reações no organismo”, diz Juliana.

O nome “endocanabinoide” faz referência à cannabis, mas é só uma questão de nomenclatura mesmo. Esse sistema é composto por duas partes: 1) Certas substâncias produzidas naturalmente pelo corpo, os canabinoides. 2) Os “receptores canabinoides”, que são ativados por essas substâncias. Esses receptores estão distribuídos pelo corpo todo: cérebro, órgãos internos, tecido conjuntivo, pele.

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Não se sabe exatamente como o sistema opera (as primeiras pesquisas sobre o assunto são recentes, da década de 1990). Mas a ciência já descobriu que os encontros entre as substâncias canabinoides e seus receptores internos é fundamental para o funcionamento adequado do corpo. Ele é importante para regular a imunidade, o sono, a dor, o estresse.

Isso não significa, obviamente, que você precise usar derivados de maconha para dormir ou manter o sistema imunológico em dia. O corpo sintetiza canabinoides a partir de alimentos. É o caso do leite, principalmente o materno (mais um ponto para a amamentação).

Certos compostos encontrados na natureza contêm canabinoides “prontos”. É o caso de alguns óleos essenciais, como o de cravo, que contém um chamado beta cariofileno. E, naturalmente, é o caso do CBD.

A tese é que o CBD, por se tratar de um canabinoide poderoso, ativa de forma eficaz os receptores da substância presentes na pele. E isso produziria uma série de efeitos positivos, como o retardo no envelhecimento da epiderme. Os fabricantes vendem seus produtos como “calmantes para a pele” – uma estratégia de marketing que associa o efeito regenerador do CBD ao psicoativo do THC, por mais que este, claro, não esteja presente nas loções, géis e cremes das grandes marcas.

Seja como for, os cosméticos com base em CBD não são livres de riscos, como explica Juliana: “Não existe um padrão de concentração de CBD ou um controle de pureza do componente, então não tem como você saber com clareza o que está colocando na sua pele, mesmo que no frasco indique os ingredientes”. O perigo está relacionado a alergias e irritações.

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(Arte/VOCÊ S/A)

E no Brasil?

Por aqui não tem conversa. É proibido fabricar, comprar ou vender qualquer cosmético que contenha derivados de cannabis. Se você tentar importar o produto após comprá-lo em um site estrangeiro ou trazer na mala depois de uma viagem para um país onde o CBD é legalizado, a resposta é a mesma: você estará infringindo a lei, concorde com ela ou não.

A legislação brasileira tem uma única exceção: o uso medicinal dos derivados de cânhamo. Quem tiver uma receita médica pode importar remédios à base de CBD – aqueles eficazes contra epilepsia, por exemplo.

Farmacêuticas também podem desenvolver remédios à base de CBD por aqui e distribuí-los no varejo. É o caso do laboratório paranaense Prati-Donaduzzi, que produz um extrato de canabidiol vendido em farmácias. Mas, como plantar cânhamo segue proibido no Brasil, a matéria-prima deve ser sempre importada.

De novo: estamos falando aqui de remédios (tarja preta), não de cosméticos, que seguem fora da lei. Mas, como brasileiro não
desiste nunca, o mercado da beleza encontrou uma alternativa: desenvolver produtos que agem no sistema endocanabinoide a partir de matéria-prima legalizada.

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A Beraca, uma empresa que desenvolve insumo para cosméticos, criou um composto assim, que, de acordo com ela, produz efeitos similares aos do canabidiol. Trata-se de uma fórmula patenteada, que ganhou o nome de CBA (sigla para Cannabinoid Active System, não por coincidência, parecidíssima com “CBD”).

Um dos clientes da Beraca é a Lola Cosmetics, que produziu uma linha de tratamento para cabelos com CBA. De acordo com a bioquímica Renata Lima, coordenadora de pesquisa e desenvolvimento da Lola, a marca tinha interesse nas propriedades do canabidiol há algum tempo, mas, por conta dos entraves jurídicos, decidiu pelo CBA.

“A Beraca nos apresentou laudos de pesquisa e toda uma documentação de comparação do CBA com o CBD. O CBA mostrou resultados satisfatórios em relação à ação anti-inflamatória e de regeneração de pele. Chegamos em uma solução compatível com o que buscávamos”, diz Renata.
Ainda há muito que aprender sobre o CBD e os canabinoides em geral. Mas o fato é que uma área sem relação alguma com ciência já está bem consolidada: a do marketing. Uma parte considerável do público entende a cannabis como um produto natural “ainda mais natural” (como se isso fosse possível).

Mas as cartas estão na mesa. Uma mudança nas leis brasileiras poderia abrir um horizonte colossal no mercado. Seja para os grandes, seja para os pequenos, que podem criar lojas especializadas, como fez a Barneys.

Atualmente, há um Projeto de Lei (399/ 2015) em tramitação na Câmara que prevê a legalização do plantio de cannabis para fins medicinais e industriais. A eventual aprovação do PL daria espaço para empresas solicitarem ao governo o plantio de cânhamo para fabricação de cosméticos. Mas o texto está travado na Câmara, sem prazo para votação. Porque, nessa seara, você sabe como é…

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(Arte/VOCÊ S/A)
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