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NFT: a revolução dos tokens no mercado financeiro

Tokens digitais são praticamente desconhecidos, mas quem tem já precisa declarar no IR. Entenda como eles abrem novos horizontes de investimento, e permitem – a pessoas comuns – lucrar até com royalties de músicas e transferências de jogadores de futebol.

Por Guilherme Eler | Ilustração: Felipe Mayerle | Design: Tiago Araújo | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 20 Maio 2021, 18h42 - Publicado em 10 Maio 2021, 16h59
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 (Felipe Mayerle/VOCÊ S/A)
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Uma plateia de grã-finos assiste ao leilão de um quadro numa galeria de arte. A obra é nada além de uma moldura com fundo branco, onde se lê “Não acredito que esses idiotas realmente compraram esta porcaria”. A cena aparece numa ilustração do artista britânico Banksy, lançada em 2006. O preço? Até US$ 95 mil por uma das 980 impressões originais. Não à toa, “Idiotas” se tornou uma das críticas mais famosas ao mercado de arte – e, principalmente, às cifras astronômicas que ele movimenta.

Corta para 2021. Uma empresa de blockchain dos Estados Unidos resolve arrematar um dos originais de “Idiotas” e queimá-lo em uma transmissão ao vivo. Era mais do que uma crítica a Banksy: o vídeo que registrou a performance foi, depois, vendido no formato de “token digital” por US$ 380 mil. O anônimo que comprou o vídeo não ganhou direito de fazer um download e guardar o arquivo .mp4 no computador: qualquer pessoa pode assisti-lo de graça no YouTube. O que ele adquiriu foi um contrato que lhe permite dizer que é dono do clipe. A moral da história é que o mercado de arte continua fazendo girar uma grana absurda – e debochando disso. Mas, agora, os entusiastas têm uma ferramenta mais moderna para tal: os NFTs.

NFT é a sigla em inglês para non-fungible token, ou token não fungível. Vamos por partes: fungível é sinônimo de “intercambiável”, ou seja, algo que tem equivalentes por aí. Pense numa nota de R$ 2. Você consegue trocá-la por duas moedas de R$ 1. Com as coisas não fungíveis, isso não existe. Só há um único item daquele tipo – e, portanto, ele não pode ser substituído. É o caso de um ingresso numerado para um evento ou do capacete que Senna usou em sua primeira vitória. Não existem dois.

Já os tokens são uma chave de segurança que serve como um certificado de autenticidade digital. Eles são a garantia de que algo (do mundo real ou do virtual) pertence a uma pessoa – e somente a ela. Cada token funciona como uma chave para abrir um cofre. Mas, a cada vez que alguém abre o cofre, a chave muda. Isso acontece porque, em vez de serem contratos escritos em papel, tokens digitais são registrados num outro tipo de cartório: o blockchain. A função desse sistema é garantir que tokens sejam incopiáveis, mas, ao mesmo tempo, transferíveis.

Os  tokens que mais circulam pelo blockchain não são exatamente contratos. São “tokens de pagamento” – as criptomoedas, como bitcoin e ethereum. Como um banco de dados virtual, o blockchain cria um novo registro cada vez que um bitcoin muda de mãos. Isso garante que cada fração de bitcoin na sua carteira virtual pertença a você, e somente a você, até o momento em que decida vendê-los (ou comprar algo com eles). Os NFTs, via de regra, são negociados na rede de blockchain do ethereum, e, como as criptomoedas, ficam guardados em carteiras virtuais.

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(Felipe Mayerle/VOCÊ S/A)

Apesar da tecnologia dos NFTs existir desde 2014, eles seguiram restritos a um clubinho de entusiastas de ativos alternativos até 2020. Dali em diante a coisa começou a ganhar terreno para valer. O uso de tokens do tipo cresceu 299% no ano passado. E 800% no primeiro trimestre de 2021.

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A onda atual de NFTs provou que literalmente qualquer coisa pode ser tokenizada. Assim como o vídeo da obra de Banksy em chamas, o mesmo aconteceu com o meme do Nyan Cat (vendido como NFT por US$ 580 mil) e o primeiro tweet da história, feito pelo CEO do Twitter Jack Dorsey em 2006 (e vendido por US$ 2,9 milhões via NFT agora em março). Mas por que, afinal, alguém gasta uma fortuna com algo que está disponível de graça? Isso não significa algo como comprar um terreno na Lua? Mais ou menos.

Arte digital também é arte

A proposta dos NFTs soou como música para os ouvidos de artistas e colecionadores. A tecnologia por trás do blockchain, afinal, garante a autenticidade de uma obra ou produto, já que os blocos são rastreáveis e não podem ser fraudados facilmente. Assim, é possível confirmar a procedência – e a exclusividade – para quem compra; dois pilares do mercado de arte que eram difíceis de garantir no meio digital.

O maior exemplo do tamanho do barulho que NFTs causaram é “Os primeiros 5 mil dias”, colagem do designer gráfico americano Beeple. Com lances iniciais de US$ 100, a arte foi comprada por US$ 69 milhões, o que torna Beeple o terceiro artista vivo que ganhou mais dinheiro ao vender uma obra. Por mais barulho que façam os NFTs de arte, eles só correspondem a cerca de 10% das vendas de tokens não fungíveis. Um campo ainda mais fértil é o da compra e venda de itens exclusivos e colecionáveis. É o caso do primeiro tweet da história. Mas já existem produtos para valer nessa linha.

US$ 500 MILHÕES
Foi o faturamento da plataforma de NFTs da NBA, a Top Shots

Um dos principais é a plataforma NBA Top Shots, que vende a posse digital de vídeos de lances das partidas emoldurada por uma espécie de card virtual. Um vídeo, nesse caso, tem um número limitado de “donos”. Os mais exclusivos, feitos para um a três proprietários, chegam a US$ 250 mil; os menos, com milhares de unidades à venda, US$ 10 (na prática, funciona como o mercado de cards, em que há os mais raros e os mais ralé).

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Estima-se que o faturamento da NBA com isso esteja na casa dos US$ 500 milhões. Sim, os vídeos seguem na internet para quem quiser ver, e a “posse” de um deles não dá ao dono o direito de vendê-la para um comercial de TV, por exemplo (só a NBA pode fazer isso).

Recentemente, clubes de futebol começaram a entrar na jogada e investir num esquema parecido. O primeiro caso brasileiro foi o do Atlético Mineiro. A equipe criou cards virtuais colecionáveis de seus atletas e passou a vendê-los no formato de NFT. Quem adquire os cards pode participar de uma espécie de fantasy game – semelhante ao Cartola FC, do Grupo Globo. Após escalar seus times virtuais, usuários ganham pontos de acordo com o desempenho que os jogadores tiveram na vida real.

Mas, para além dos colecionáveis, já surgiram usos mais concretos para os NFTs e outros tokens digitais. É aí que a coisa começa a ficar legal.

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(Juliana Krauss/VOCÊ S/A)

Tokens de royalties

Uma das alternativas foi vincular trabalhos vendidos na forma de NFTs ao pagamento de royalties. Beeple, por exemplo, negociou que ganhará 10% do valor de venda toda vez que a obra “Os primeiros 5 mil dias” trocar de dono.

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A startup brasileira Phonogram.me nasceu com a ideia de fazer algo parecido – mas com foco no mercado da música. Ela pretende servir como uma plataforma para conectar músicos que queiram dividir os royalties de suas canções com investidores dispostos a comprá-los. A legislação brasileira garante que um músico tem a posse dos direitos autorais de suas produções por até 70 anos após sua morte. Isso significa que, a cada vez que a música é reproduzida – em uma plataforma de streaming, num evento público ou numa rádio –, pinga dinheiro na conta do autor.

O que o Phonogram.me faz é representar os artistas junto a organizações que fiscalizam o pagamento de direitos autorais – caso do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) e da Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes). Depois, coloca cotas de seus royalties à venda no formato de NFT. “A burocracia para negociar o ‘share’ de um fonograma [ou seja, quebrar o valor de uma música entre diversos investidores] é tanta que ninguém faz”, explica Lucas Mayer, produtor musical e sócio da Phonogram.me.

O artista pode vender, digamos, 30% de uma música para investidores e embolsar no ato algum dinheiro por sua obra. Se a canção for usada num comercial de TV, por exemplo, ele e o investidor racham o lucro. Trata-se de um negócio de risco para ambas as partes. Se a música ficar no limbo, o investidor perde grana. Se ela estourar, o artista ganha um terço a menos do que receberia. Mas é de risco que qualquer mercado é feito.

Segundo os sócios da empresa, a Phonogram.me já recebeu propostas de mais de 2 mil músicos e produtores. Marcelo D2 e a obra dos Mamonas Assassinas, por exemplo, farão parte do catálogo a partir de julho.

Tokens de ativos financeiros

Para além dos NFTs, a tokenização vem começando a movimentar também o mercado de ativos alternativos. No Brasil, quem entrou de cabeça no segmento foi a Mercado Bitcoin: desde 2019, a plataforma negocia tokens de precatórios e de cotas excluídas de consórcio.

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Precatórios são dívidas que órgãos públicos criam com pessoas físicas. Imagine que sua casa está numa região que irá receber uma estação de metrô. Para começar a construção, o Estado precisa, primeiro, comprar as casas vizinhas.
O dinheiro não sai de um banco federal e vai parar na conta corrente de cada dono de imóvel. Para fazer esse pagamento, o poder público emite um precatório, contrato que garante que um morador deve receber certa quantia em dinheiro. A dívida vai, então, para uma longa fila de pagamento, que costuma durar alguns anos.

Um movimento comum no mercado é que o dono da casa decida por não esperar pelo pagamento do Estado. Essa dívida, então, pode ser negociada antes do prazo de vencimento por bancos, fundos de investimento e family offices. Essas companhias compram as dívidas por um preço mais baixo que o de face, e as transformam em um ativo financeiro alternativo.

RS$ 100 MILHÕES
Foi o montante tokenizado pela Mercado Bitcoin desde 2019.

O caso das cotas de consórcio é parecido. Só que a dívida, no caso, não é com o Estado, mas com um CNPJ. Pense que você está participando do consórcio de um condomínio. Algumas pessoas desistem no meio do caminho, seja porque não se interessam mais pelo bem, seja porque se tornam inadimplentes. Nesses casos, quem parou antes pode resgatar o valor que pagou. Pelas regras do consórcio, no entanto, só é possível recuperar o dinheiro investido depois que o consórcio acaba. A administradora tem que arcar com a dívida até seis meses após o término.

Então, ou a pessoa termina de pagar o que falta ou opta por receber uma carta de crédito. Quem pagou e não quer esperar meses até ver a cor do dinheiro negocia essa carta. Quem compra com desconto e espera, assim como com os precatórios, lucra lá na frente, recebendo o pagamento integral da dívida.

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Quem costumava comprar precatórios ou cotas de consórcio eram apenas investidores mais abastados, porque dívidas desse tipo costumam ser polpudas – e, por tabela, têm um piso alto de investimento. Com a tokenização, é como se precatórios ou cotas de consórcio fossem divididos em vários pedaços pequenos entre diferentes investidores.

Vamos dizer que um precatório dê direito a receber R$ 1,2 milhão do governo, e o dono do precatório, que precisa de dinheiro na mão, tope negociá-lo por R$ 900 mil. A corretora, então, pega e picota esse precatório em 9 mil tokens, e vende cada um a R$ 100. Quem comprou o token por R$ 100 pode tentar vendê-lo caso surja uma proposta dentro da plataforma, como num leilão. No dia em que o governo pagar, cada token vai render, por exemplo, R$ 120. Aí, os investidores lucram – a Mercado Bitcoin centraliza o pagamento e repassa os valores aos detentores do token.

“É como se fosse uma corretora tradicional. Coloca-se um determinado depósito e lá dentro se escolhem os produtos, com todo o controle de saldos e ativos”, explica Reinaldo Rabelo, CEO da Mercado Bitcoin. Desde 2019, a MB tokenizou mais de R$ 100 milhões em recebíveis de precatórios e de consórcios. O rendimento varia bastante, e não há uma data fixa para o retorno (já que isso depende da boa vontade da prefeitura, do governo estadual ou da União, dependendo de quem emitiu o precatório). De acordo com Reinaldo, um dos tokens da MB pagou 16,36% em 14 meses. Tokens de cotas de consórcio liquidados, por sua vez, tiveram rendimento anual entre 8,25% e 9,2%.

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(Felipe Mayerle/VOCÊ S/A)

O ativo tokenizado mais recente da Mercado Bitcoin é o Vasco Token, que existe desde novembro de 2020. O produto é uma parceria com o Vasco da Gama, clube carioca de futebol, e se aproveita de um mecanismo financeiro da Fifa para a venda de jogadores. Os tokens representam frações dos direitos econômicos de 11 atletas formados nas categorias de base do Vasco.

A Fifa garante que clubes formadores, onde atletas atuaram entre os 12 e 23 anos, recebam até 5% do valor de negociações futuras. Um exemplo é Philippe Coutinho, jogador do Barcelona que despontou na categoria de base do Vasco. Toda vez que Coutinho troca de clube – como a última, em que deixou o Bayern de Munique para voltar ao Barcelona –, o time carioca tem direito a uma pequena fração do dinheiro envolvido (neste caso, 2%).

A “cesta” de atletas tokenizados do Vasco mescla nomes veteranos, como Souza (atualmente no Besiktas, da Turquia) com jovens promessas, como Paulinho (Bayer Leverkusen) e Douglas Luiz (Aston Villa). Segundo cálculos feitos pelo Vasco e a KPMG, estima-se que esses 11 jogadores renderão, ao longo da carreira, R$ 60 milhões ao clube formador. Esse número considera quantas transações eles devem protagonizar até se aposentarem.

O Vasco, então, fez uma oferta em tokens no valor de R$ 50 milhões. Foram emitidos 500 mil tokens de R$ 100. A primeira liquidação parcial, cinco meses após o início do projeto, rendeu 1,63% aos investidores.

“Esse dinheiro ficava escondido na contabilidade do clube, que não conseguia monetizar. O time precisava que algo acontecesse para ganhar o valor equivalente. Agora, com a tokenização, times podem monetizar parte desse valor e dividir o risco com o próprio mercado”, explica Rabelo, que é vascaíno.

“Juro que não houve nenhuma influência minha. Estávamos conversando com cinco clubes. O Vasco estava trabalhando com a KPMG, que conduzia o processo de reorganização financeira, acabou tomando a frente e foi
pioneiro nesse processo.”

A compra de direito de atletas via tokenização já é algo previsto para entrar na declaração do Imposto de Renda. Não só ela. De acordo com o código 89 do Manual do IR, a partir da declaração de 2021 entram “os tokens vinculados a ativos reais ou direitos sobre recebíveis, tais como imóveis, ações, precatórios, consórcios contemplados, passes de jogadores de futebol, entre outros”.

Para Rabelo, a tokenização de ativos é tendência em setores que permitem “investimento de engajamento” – como entretenimento, games e, claro, esportes, nos quais os fãs podem apoiar seus projetos preferidos.

O primeiro grande exemplo desse potencial veio da música. Os americanos do Kings of Leon se tornaram a primeira banda a lançar um álbum em NFTs – uma ideia que gerou US$ 2 milhões. Quem adquiriu tokens do álbum When You See Yourself, além de ter acesso a produtos exclusivos, pode comprar o direito de assistir da área VIP aos próximos shows da banda. Rabelo brinca: “Se fizerem um NFT do Vasco que permita você entrar com o time toda vez em São Januário, eu compro”.

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