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A disparidade de renda entre o 1% mais rico

Esse grupo concentra 25% da renda nacional. Mas nem todos podem ter um iate ou mesmo viajar de classe executiva. Entenda neste raio-x do topo da pirâmide brasileira.

Por Tássia Kastner | Ilustração: Vini Capiotti | Design: Kauan Machado | Edição: Alexandre Versignassi
Atualizado em 7 jan 2024, 23h44 - Publicado em 10 nov 2023, 06h10
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 (Vini Capiotti/VOCÊ S/A)
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que é, afinal, ser rico? João Moreira Salles é um documentarista brasileiro. Quando lançava No Intenso Agora, em 2017, foi convidado para participar do Conversa com Bial. O jornalista começa o papo com um preâmbulo sobre desigualdade, tema que, de alguma maneira, permeia os filmes de João. Lá pelas tantas, Pedro Bial cita o próprio entrevistado: “No Brasil, documentarista é ‘quem tem [dinheiro] filma quem não tem’”.

E emenda a pergunta: a frase se aplica também ao trabalho dele? A resposta é que sim. “Tem isso. Nós somos classe média – classe média alta, que seja –, brancos, e sabemos que, na hora que a gente quer filmar a favela, é possível. Tem alguma coisa que nos permite fazer isso. O contrário, evidentemente, é impensável.”

A resposta é coerente com a realidade brasileira. Mas tem um problema: o sobrenome Moreira Salles, você sabe, faz de João membro de uma das famílias mais ricas do Brasil – uma das controladoras do Itaú Unibanco, o maior banco privado do país, entre outros negócios. E isso garante a ele uma posição na lista de bilionários da Forbes, com uma fortuna avaliada em US$ 4,4 bilhões – ou R$ 22 bilhões. Não há critério que enquadre o documentarista na classe média.

A declaração dele, no entanto, ilustra algo do comportamento humano. Rico é (quase sempre) o outro. Seja como for, não é fácil definir exatamente o que é riqueza quando falamos em patrimônios mais terráqueos. 

Uma das ferramentas usadas por economistas para medir desigualdade, separando ricos e pobres, é a estratificação da população por renda. Primeiro imagine uma fila em que todos os adultos do país são ordenados por renda, da menor para a maior. Depois disso, divida essa população em grupos. Pegue a pessoa no centro, ela tem a renda mediana, que divide a metade pobre da metade teoricamente não-pobre.

A mediana da renda no país é de R$ 1.167 (dados de 2021, os mais recentes) – ou seja, 50% da população tem renda mensal menor que essa. Por essa divisão em frações, quem ganha R$ 4 mil por mês já pertence aos 10% mais ricos do Brasil – e quem recebe mais de R$ 7 mil se enquadra no grupo dos 5% mais endinheirados. Estatisticamente está correto, mas soa cômico, além de trágico. 

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Isso sem falar que as diferenças de ganhos são relativamente pequenas entre um grupo e outro. Entre os 10% e os 5% mais ricos, a renda mensal nem chega a dobrar.

O Brasil é considerado um país de renda média: some todos os salários e divida pelo número de pessoas: tem-se R$ 4 mil, muito acima dos R$ 1.167 da mediana.  Uma distorção que só acontece porque somos um país ferrenhamente desigual. 

A medida mais usada para estimar a desigualdade é o Índice Gini. A pontuação brasileira, de 52,9, coloca o país na 17ª posição de um ranking liderado majoritariamente por nações africanas. O país mais desigual do mundo é a África do Sul, como Gini de 63. Quanto menor o número, menor a desigualdade. O Gini dos EUA está em 39,8, o da Alemanha, em 31,7.

O que acontece, então, é: o uso da segmentação para encontrar os pobres e ricos acaba “enriquecendo” uma parcela da população que tem renda semelhante à maioria mais pobre. “A diferença entre um pobre e um não-pobre no Brasil é muito pequena”, diz Marcelo Medeiros, autor do recém-lançado Os Ricos e os Pobres

Por outro lado, essa mesma técnica acaba agrupando, no topo da pirâmide, gente com ganhos muito mais díspares que os da base.

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Fica mais fácil de visualizar com as classes sociais. A Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) divide a população em seis categorias, de acordo com a renda média mensal familiar. As classes são D-E, C2, C1, B2, B1 até A. A renda média da B1 é de aproximadamente R$ 10 mil. Para os ricos, há apenas uma divisão, a classe A, com renda média de R$ 22 mil por essa classificação. 

Em Os Ricos e os Pobres, Marcelo destrincha justamente essa desigualdade do topo da pirâmide, que acaba escondida em grandes grupos como “classe A” ou mesmo o 1% mais rico. 

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(Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Pobre rico

Pegue a metade pobre da população e some tudo o que essas pessoas ganham. Juntas, elas controlam apenas 10% da renda nacional. Já o grupo dos 10% mais ricos fica com 50%. Mas nisso está gente que ganha R$ 4 mil – e quem tem renda de seis dígitos, ou mais.

Quanto mais fragmentado, maior o gap. O 1% mais rico do Brasil, formado por 1,5 milhão de pessoas, controla quase 25% da renda total do país. Esse grupo é formado a partir das pessoas que ganham acima de R$ 28 mil – ao ano, R$ 340 mil. 

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Só tem um detalhe. Quem recebe R$ 28 mil mensais são os “pobres” entre os mais ricos do Brasil. Quem faz parte do 0,1% é dez vezes mais rico – ganha R$ 300 mil por mês, não por ano.

É como se alguém do 0,1% comprasse todo mês um Jeep Compass e ainda sobrasse duas vezes o salário da pessoa da parte de baixo do 1%. Ela, por outro lado, precisaria trabalhar 8 meses para comprar o mesmo carro. Mesmo uma passagem executiva de ida e volta (luxo relativamente acessível) pode comer o salário todo, ou mais, de quem está na base do 1%.

Nos Estados Unidos, a diferença entre o 1% e o 0,1% é mais modesta: quatro vezes o salário.

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Por sinal, a FGV Social estima que o nosso 1% tenha, em média, um patrimônio de R$ 4,6 milhões. Imagine uma pessoa com um apartamento de dois quartos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, um ou dois carros do ano, a depender do tamanho da família, e investimentos para a aposentadoria (para uma renda complementar de R$ 10 mil, você precisa ter investidos cerca de R$ 2,5 milhões ao se aposentar). Grosso modo, isso é ter R$ 4,6 milhões em patrimônio. 

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O mais provável é que você classifique essa pessoa como “classe média”, isso porque a versão consolidada do que é ser classe média no imaginário popular veio do estilo de vida americano. A casa com cerquinha branca no subúrbio, o carro, a família margarina com todas as comodidades. 

“Se usar a referência americana, o rico aqui é classe média nos EUA”, diz Marcelo Neri, pesquisador da FGV Social. E o 1% dos EUA é 12 vezes mais rico que o daqui: tem patrimônio de US$ 11 milhões – ou seja, R$ 55 milhões.   

Agora vamos para o 0,1% mais rico daqui. Essa fatia tem patrimônio acumulado de R$ 26 milhões, em média – ainda menos que o 1% americano. 

Já as 15 mil pessoas que pertencem aos 0,01% mais ricos têm patrimônio médio R$ 153 milhões – aí sim superior ao 1% dos EUA, e 33 vezes mais que a turma do 1% daqui.

As subdivisões do topo, de qualquer forma, não têm utilidade em si. Separar a população por faixas de renda é uma ferramenta que serve para a adoção de políticas públicas, e não à toa nós, brasileiros, somos tão bons em analisar a parte de baixo da pirâmide.

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O Banco Mundial considera que, em países de renda semelhante à brasileira, pobre é quem vive com menos de US$ 5,50 por dia, o equivalente a R$ 825 por mês. Mas para ser elegível ao Bolsa Família é preciso que a renda per capita familiar não ultrapasse R$ 218. No BPC (Benefício de Prestação Continuada), o governo paga um salário mínimo para idosos ou pessoas com deficiência que tenham renda máxima de R$ 330, o equivalente a ¼ do salário mínimo.

Essas “notas de corte” funcionam como medidas de pobreza toleradas pela sociedade, ainda que não estejam nem próximas da linha de pobreza real. E isso é um problema, obviamente.  

Já na outra ponta, dos endinheirados, é subjetivo dizer a partir de qual patamar a pessoa começa a ser considerada rica – miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes. 

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Trabalho e renda

Existem outras formas de separar “ricos” de “muito ricos”. De acordo com dados extraídos do Imposto de Renda, a fatia endinheirada que ganha até R$ 58,2 mil por mês obtém até 40% de suas receitas na categoria “isenta” – ou seja, não como salário, que é sempre tributado.

A categoria de rendimentos isentos é ampla. Se você tiver um imóvel e quiser vendê-lo para comprar outro maior, o ganho da valorização do bem será livre de IR se de fato a compra de um novo apartamento ou casa acontecer. Se você tem dinheiro na poupança, em LCAs ou LCIs, o lucro é isento. Se você receber doação ou herança, também. E se for acionista de empresa que paga dividendos (seja ela de capital aberto ou fechado), esse ganho também não será tributado.

Conforme se escala no topo da pirâmide, maior a fatia da renda isenta de IR. Quem recebe mais de R$ 422 mil por mês é tributado por apenas 30% do que entra na conta – 70% é isento (e metade dessa fatia vem da distribuição de dividendos).

Não se trata apenas de gente como Luiz Barsi, que investe em ações na bolsa em busca de dividendos. Quem passa a trabalhar como PJ pode converter o lucro da empresa em proventos, que são isentos de IR. Há uma parcela importante da elite do país enquadrada nessa categoria, como médicos e advogados.

Até uma década atrás, analisar o topo da pirâmide era ainda mais difícil. As pesquisas de renda e desigualdade se baseavam apenas nos dados do IBGE, como a Pnad Contínua (que mede a ocupação). Esse tipo de pesquisa depende de dados declarados, o que envolve dois problemas: a tendência das pessoas de sonegar informações ou subestimá-las e também o fato de que a camada rica da população nem sequer abre a porta de casa para responder as pesquisas.

O economista Thomas Piketty, com seu best seller O Capital no Século XXI, popularizou uma metodologia que envolve o cruzamento de dados como os da Pnad com informações do Imposto de Renda, o que melhora a análise da população como um todo.

Segmentar a camada de renda alta não diz respeito a definir quem está por cima da carne seca e quem só imagina estar. Significa enxergar melhor as disparidades tributárias. “Eu não preciso de chamar de ricos, preciso criar a tributação [mais progressiva]”, diz Marcelo Medeiros.

A lógica é a de que quem ganha mais contribui mais. Daí a proposta de retomar a cobrança de IR sobre dividendos, dado que ele tem mantido boa parte da renda dos mais ricos protegida do pagamento de impostos.

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(Vini Capiotti/VOCÊ S/A)

Não significa que seja necessário ir do 8 ao 80, como estava na proposta apresentada pelo então ministro Paulo Guedes, durante o governo Bolsonaro. Ele pretendia cobrar 20% sobre toda a distribuição de resultados.

Nos Estados Unidos, a tributação de dividendos segue uma lógica progressiva. Quanto maior a renda mensal do indivíduo, maior o percentual que ele paga de IR sobre distribuição de lucros. E, assim, como nos salários, há uma faixa de isenção de imposto. Quem tem renda total de até US$ 3.333 por mês (R$ 17 mil) não paga nada sobre o que entra na forma de dividendos. Isso engloba 54% da população americana. Só o 1% mais rico paga a tarifa cheia, de 20%. Os demais 45% desembolsam 15%.   

Já por aqui abundam distorções. A alíquota mais alta do IR, de 27,5%, é paga por quem ganha mais de R$ 4.664,68. Grosso modo, os 10% mais ricos são tratados igualmente pela receita, apesar das diferenças brutais de renda que existem entre eles.

A taxação de grandes fortunas virou tema de disputa na internet justamente pela dificuldade de definir o que é, de fato, riqueza. É daí que vem o meme “não se preocupe, seu HB20 não é considerado grande fortuna”. Só tem um detalhe: 66% da população tem menos de R$ 50 mil em patrimônio, isso enquanto um HB20 básico custa R$ 80 mil. “Grande”, portanto, é relativo.

Taxar “fortunas” nada mais é do que taxar patrimônio – e metade dos bens dos brasileiros, pobres e ricos, já está sujeita a um imposto desse tipo: o IPTU.

A discussão, então, está em como e quando taxar a outra metade dos bens. Em seu livro, Marcelo abre a discussão sobre taxar renda e patrimônio de forma combinada: quem paga na renda não precisaria pagar no patrimônio, mas quem, por qualquer motivo que seja, tem uma parcela importante da renda isenta, ficaria com uma alíquota maior sobre bens.

Não se trata de uma cruzada à lá Robin Hood, mas chegar a um mecanismo que seja mais equânime, e que não precise de adjetivos para decidir quem paga o quê.

Uma reforma tributária ampla tampouco salvaria o Brasil da desigualdade. O importante, no fim, é reconhecer que ela existe – e lançar mão de todas as ferramentas possíveis para amenizá-la. 

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