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Quiet quitting: a nova face do desengajamento

Esforçar-se o mínimo possível no emprego é a estratégia escolhida da geração Z para lutar contra o burnout. A "demissão silenciosa", porém, pode sair pela culatra.

Por Bruno Carbinatto | Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Brenna Oriá | Edição: Alexandre Versignassi
14 out 2022, 06h38
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 (Gustavo Magalhães/VOCÊ S/A)
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Bater o ponto; cumprir só as tarefas preestabelecidas; não se oferecer para novas empreitadas; não desenvolver novos projetos por contra própria; desligar o computador e esquecer que o trabalho existe – nem um minuto depois da jornada de oito horas estipulada em contrato, claro.

Parece a descrição da rotina de alguém pouco engajado, ou até improdutivo, dependendo do nível de falta de proatividade. Até não muito tempo atrás, era o que chamávamos de “braço curto”. Agora, diz-se que ele se tornou adepto do “quiet quitting”.

O termo – que significa “demissão silenciosa” – começou a gerar burburinho entre os usuários do TikTok em meados de julho, inicialmente entre americanos e depois no resto do mundo. E a real é que nem existe uma definição única, precisa, do que de fato é quiet quitting.

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Uma coisa é certa, de qualquer forma: não tem nada a ver com demissão de fato. Em geral, a expressão é usada para descrever os profissionais que continuam trabalhando e cumprindo as tarefas de seu cargo, mas que não estão dispostos a ir além disso – não trabalham mais horas do que o previsto, não se voluntariam para outras funções, não são proativos em sugerir mudanças e melhorias nem buscam evoluir na carreira.

Também tem uma outra faceta comumente enquadrada dentro do fenômeno: a de enxergar o trabalho sob uma nova perspectiva, menos desgastante. Os primeiros vídeos a propagar o quiet quitting citam a importância de cumprir com as obrigações, mas ressaltam que o trabalho não deve ser encarado como o centro da vida – lazer, saúde mental e bem-estar devem ser a prioridade.

“Você não está desistindo de vez de seu trabalho; está só desistindo da ideia de ir acima e além do dever. Você continua a desempenhar suas funções, mas não adere mais à mentalidade da cultura batalhadora, que faz do trabalho a coisa mais importante de sua vida”, diz um dos primeiros vídeos sobre o tema.

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Com o forte potencial de alcance do app de vídeos curtos, o termo viralizou. Em pouco tempo, o quiet quitting já estava em diversas manchetes mundo afora, divulgado como o novo grande fenômeno que estaria mudando do mercado de trabalho.

Em setembro, por exemplo, a Bloomberg noticiou: “CEOs estão preocupados com o quiet quitting”. Entre os dados que corroboram a tese está uma pesquisa da Society for Human Resource Management. Ela diz que metade dos profissionais de recursos humanos se mostra preocupada com o fenômeno e um terço deles já testemunhou exemplos de “demissão silenciosa” em suas empresas.

Não demorou para que um outro dado, ainda mais chocante, viesse à tona: segundo uma pesquisa da Gallup, metade da força de trabalho americana estaria dentro da caixinha da “demissão silenciosa”. Uma proporção impossível de ignorar.

A pesquisa, na verdade, entrevistou 15 mil pessoas e dividiu a força de trabalho americana em três categorias. 32% dos profissionais acabaram na categoria “engajados”. Pelos critérios do Gallup, esses são os que cumprem suas tarefas e estão satisfeitos com o trabalho que realizam. Outros 18% encaixam-se na categoria “ativamente desengajados” – aqueles que não cumprem como esperado e também não escondem o descontentamento.

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(Gustavo Magalhães/VOCÊ S/A)
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O restante – 50% – está num meio termo, chamado de “não engajados”. São profissionais que cumprem seu trabalho, mas não necessariamente se sentem satisfeitos ou animados com ele. A maioria dos participantes desse grupo, inclusive, está procurando outro emprego. Foi esse dado que, aproveitando o viral do momento, o Gallup divulgou como “metade da força de trabalho está em demissão silenciosa” (mesmo antes de o termo bombar, os dados da empresa já apontavam um cenário parecido, mas sem usar o nome quiet quitting).

O fenômeno, porém, não é um consenso. Tão rápido a ideia viralizou, vieram as críticas ao seu significado. Por um lado, fazer apenas o que é necessário e não ir além do esperado sem que haja algum tipo de recompensa não é uma ideia absurda, muito menos revolucionária. Também é normal que novas gerações, ao entrar no mercado de trabalho, tragam novos olhares para a relação entre vida pessoal e vida profissional. Até aqui, nada de novo para sustentar tanto falatório.

Por outro lado, o quiet quitting vem em meio de outros fenômenos inegáveis, que já estão transformando o mercado de trabalho: a flexibilização dos regimes, a valorização de temas ligados à saúde mental, o aumento do número de demissões voluntárias (conhecido como “Grande Resignação”)… E traz consigo novas variáveis geracionais que já não podem ser ignoradas. Vamos entendê-las.

O velho

“Está evidente que ninguém mais quer trabalhar nestes tempos difíceis.”

Poderia ser um comentário embaixo de uma das primeiras notícias sobre o quiet quitting, quando o tema começou a viralizar. De fato, frases como essa pipocam a todo momento quando o assunto é demissão silenciosa (ou Grande Resignação, ou burnout…).

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Mas a citação é, na verdade, de um jornal local do estado americano do Kansas publicado em 1894. O editor reclama ali que as minas de carvão do país estavam fechadas devido a greves naquele ano.

Uma geração mais tarde, em 1922, outro jornal dizia que o desemprego da época se dava por conta da “preguiça” da população americana. Às portas do século 21 e com o início da massificação da internet, em 1999, uma notícia da Flórida trazia o lamento do dono de uma loja de sapatos sobre seus funcionários: “Ninguém mais quer trabalhar. Todos desejam ficar na frente de um computador e ganhar um monte de dinheiro”. Em 2022, agora, a Forbes noticiou que 1 em cada 5 empresários concorda que boa parte dos trabalhadores simplesmente não se interessa pela labuta.

O cientista político canadense Paul Fairie compilou essas e outras notícias em seu Twitter no começo do frenesi do quiet quitting para provar um ponto: a reclamação de que “ninguém quer mais trabalhar” é tão antiga quanto o próprio trabalho. Afinal, é natural não querer se esforçar além da conta, ainda mais se o profissional sente que não será recompensado por isso.

Ao longo do tempo, foram sendo criados termos para explicar exatamente o quê causa o desengajamento – o quiet quitting, então, é só o mais recente deles.

A própria síndrome de burnout é um desses termos. O conceito, criado pelo psicólogo Herbert J. Freudenberger, descreve uma situação de estresse crônico que leva o trabalhador ao esgotamento (burnout, em inglês), derruba sua produtividade e zera seu engajamento (entenda tudo sobre ela nesta reportagem).

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O fenômeno foi amplamente pesquisado e validado pela ciência e, em 2022, entrou para a CID-11 da Organização Mundial da Saúde como uma condição ocupacional, ganhando projeção mundial recentemente (há décadas, porém, a ciência já se debruçava sobre o assunto).

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(Gustavo Magalhães/VOCÊ S/A)

Outro termo, mais recente, também entra nesse grupo de “fenômenos do desengajamento” – e se assemelha mais ao quiet quitting em sua forma. É a “síndrome de boreout”, uma fusão irônica da palavra burnout com boredom (“tédio” em inglês).

O termo foi criado pelos consultores de negócios Peter Werder e Philippe Rothlin em 2007; segundo eles, assim como o burnout é um quadro de estresse crônico, o boreout se caracteriza por um cenário de tédio crônico. Ele pode ser causado pela falta de carga de trabalho – o trabalhador ainda precisa cumprir a jornada, mas não tem o que fazer nesse tempo –, ou porque as tarefas são consideradas maçantes, pouco desafiadoras, incompatíveis com a qualificação ou os interesses do profissional.

O boreout nunca teve o prestígio acadêmico do seu primo esgotado. Mesmo assim, há evidências de que o tédio é tão inimigo do ambiente de trabalho quanto o estresse. Um estudo finlandês de 2014 analisou dados de mais de 11 mil trabalhadores e descobriu que aqueles que se sentiam entediados no trabalho tinham maiores níveis de faltas e demissões voluntárias inesperadas, além de apresentarem também mais problemas de saúde.

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De certa forma, um quadro de boreout se assemelha a um de quiet quitting. Ambos são marcados por apatia. Mas a demissão silenciosa traz uma face nova para o problema do desengajamento: ao contrário do boreout, ele é um movimento voluntário – e aí que mora o perigo.

O novo

Se a acusação de que “ninguém mais quer trabalhar” é antiga, a resposta que a geração Z (nascidos a partir de meados dos anos 1990) deu a ela é nova: “não queremos mesmo”. Ou, pelo menos, “não dessa maneira”.

Quando foi a vez de os millennials, a geração anterior à Z, entrarem no mercado de trabalho, eles já ganharam a fama de preguiçosos e mimados. Rótulos no mínimo injustos, já que, apesar de ser uma geração mais escolarizada que as precedentes, um millennial americano tem apenas 80% da riqueza que seus pais tinham quando eram jovens. Além disso, sofrem mais de burnout do que as gerações anteriores, mostrando que carga excessiva e estresse não faltam no modelo atual de trabalho. A geração Z, por fim, pegou esse bonde e rebelou-se, sem vergonha de admitir.

De certa forma, os astros se alinharam para fazer do termo quiet quitting o sucesso que ele se tornou. A geração Z teve que enfrentar, logo no início de sua jornada profissional, uma pandemia que concretizou o modelo híbrido (ou remoto) de trabalho. Flexibilidade virou regra, e a percepção de que os moldes tradicionais podem ser adaptados abriu um leque de oportunidades para repensar as relações trabalhistas.

Ao mesmo tempo, a flexibilidade também bagunça a linha divisória entre trabalho e vida pessoal. Como já disse Satya Nadella, CEO da Microsoft: “Às vezes, trabalhar em casa é como dormir no escritório”. O quiet quitting, nesse caso, seria uma resposta a esse sentimento. Um meio de diferenciar casa e trabalho de forma clara.

Pela culatra?  

A demissão silenciosa e a Grande Resignação (aí com demissões de verdade) são fenômenos contemporâneos não por acaso. Ambos surgiram nos EUA em 2022, com o nível de desemprego baixíssimo, na casa dos 3% – na verdade, faltava mão de obra em boa parte das áreas. Nisso, os trabalhadores podiam se dar o luxo de largar vagas menos atrativas em busca de condições melhores – ou, no caso dos quiet quitters, de se manter no menor engajamento possível, sem medo de uma possível demissão.

O cenário é diferente no Brasil, onde o desemprego ronda os 9%, e começa a mudar mesmo nos EUA, com uma recessão batendo às portas e prometendo bagunçar o mercado de trabalho por lá. Num ambiente mais disputado, os quiet quitters podem acabar sendo demitidos de verdade e substituídos por candidatos mais engajados. O tiro tende a sair pela culatra.

Mas há um segundo risco, ainda mais básico, e que foi rapidamente lembrado por especialistas quando o tema entrou em alta. O objetivo do quiet quitting é mais do que legítimo – evitar o burnout. O meio escolhido para isso, porém, pode simplesmente levar ao também pernicioso boreout.

Ser pouco engajado ou interessado no que se faz profissionalmente, como vimos, pode levar a um cenário de tédio. Afinal, a causa do boreout não é só a eventual baixa carga de trabalho, mas também a apatia pelas atividades. A demissão silenciosa pode tornar as oito horas diárias insuportavelmente maçantes. No longo prazo, o tédio pode se tornar crônico – e trazer sintomas negativos, assim como seu primo burnout.

Ninguém deve trabalhar até a exaustão, claro. Mas fazer apenas o mínimo não é a resposta ideal, já que assim você será visto como descartável – e as contas não vão parar de chegar caso você termine descartado. Cabe a cada um encontrar o meio termo ideal.

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