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Cerveja artesanal tem mercado quente para empreender e carreiras em alta

Nos últimos dez anos saltou de 70 para quase 900 o número de cervejarias artesanais no país. Há oportunidades para quem quer empreender ou trabalhar

Por Álvaro Bodas
Atualizado em 10 abr 2020, 10h00 - Publicado em 10 abr 2020, 10h00
Daniel Bekeierman, fundador da Trilha Cervejaria: demissão de uma construtora para abrir a própria marca de cerveja |  (Foto: Omar Paixão/VOCÊ S/A)
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Depois de dez anos de carreira no setor imobiliário, em 2016 o paulistano Daniel Bekeierman, de 37 anos, decidiu largar o cargo de gerente de negócios em uma grande construtora e se aventurar no ramo de cerveja artesanal. “Sempre me interessei pelo assunto e, quando viajava para outros países, visitava produtoras. Assim, percebi que no Brasil consumíamos uma cerveja muito abaixo do padrão e que havia uma oportunidade de negócio por aqui”, afirma.

Após realizar um curso de sommelier, Daniel reuniu 200.000 reais em economias e, junto com um amigo, começou a desenvolver a própria receita de cerveja. Na época, o laboratório de testes funcionava de forma improvisada, nos fundos do antigo restaurante do sócio de Daniel, e a produção era terceirizada. “Depois de 11 meses e 40 tentativas frustradas, chegamos à fórmula da Melonrise, que até hoje é nosso carro-chefe”, diz. Assim nascia a Trilha Cervejaria.

De lá para cá, a empresa inaugurou um espaço para degustação e fabricação próprias na zona oeste de São Paulo, desenvolveu outros 25 rótulos e passou a distribuir suas criações para todo o estado. A equipe, que antes era composta apenas de Daniel e seu sócio, saltou para 12 pessoas. “Até o final do ano vamos inaugurar uma nova fábrica na capital e aumentar nossa capacidade de produção para 35.000 litros por mês”, comemora o empreendedor.

Não é modinha

Se quando Daniel resolveu empreender o mercado de cerveja artesanal ainda levantava especulações sobre se tratar de uma bolha, assim como as fatídicas paletas mexicanas, nos últimos anos o segmento mostrou que veio para ficar.

De acordo com dados de 2019 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), de 2008 a 2018 o número de cervejarias artesanais no Brasil saltou de 70 para quase 900. Juntas, elas faturam cerca de 2,4 bilhões de reais. São consideradas artesanais as cervejarias independentes ou microcervejarias, que não estão ligadas a grandes grupos.

Globalmente, essas pequenas notáveis também estão em alta. Segundo o relatório Global Craft Beer ­Market, em 2018 o segmento movimentou 38 bilhões de dólares no mundo todo e a expectativa é que ele cresça 14% ao ano até 2023.

Por aqui, o processo que levou os brasileiros, conhecidos por preferirem cervejas mais leves, a cair no gosto das artesanais é recente. Segundo Mayra Viana, analista de competitividade do Sebrae Nacional, tudo começou com a chegada de opções importadas ao país, seguida pelo lançamento de rótulos especiais por grandes companhias. “O paladar do consumidor foi sendo apurado, e restaurantes e supermercados abriram espaço para esse tipo de produto”, afirma.

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Além de mais acessíveis, outra explicação para o aumento do interesse pelas artesanais é o fato de que, hoje, os consumidores são mais informados e exigentes, buscando produtos de melhor qualidade e menos industrializados. “Vemos o movimento das pessoas em optar por ingredientes locais em detrimento de grandes produtores acontecendo com diversos produtos além da cerveja, como café e queijo. É uma mudança no comportamento de consumo”, diz Carlo Lapolli, presidente da Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva).

Briga de gigantes

Com cerca de 14 bilhões de litros produzidos por ano, o Brasil é o terceiro maior mercado de cerveja do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos. O setor gigantesco é igualmente concentrado e está nas mãos de basicamente três empresas: Ambev, que lidera com 60% de participação, seguida por Heineken e Petrópolis, que detêm, respectivamente, 21% e 15% do segmento cada.

“É como estar em um tanque com três tubarões e você ser um peixinho. Antes de arriscar é aconselhável estudar bastante o mercado. Algumas regiões já estão um pouco saturadas e, por causa das questões tributárias, pode ser mais vantajoso vender regionalmente, por exemplo”, afirma Carlo Lapolli, da Abracerva.

E esses tubarões já estão de olho no suculento pedaço do segmento artesanal. Só nos últimos seis anos, a Ambev lançou diversos rótulos voltados para públicos mais exigentes, como Beck’s, Corona e Skol Puro Malte, além de adquirir as cervejarias artesanais Colorado, de Ribeirão Preto, e Wäls, de Belo Horizonte. “Em breve as marcas artesanais enfrentarão uma disputa direta com as grandes cervejarias”, alerta Carlo Lapolli.

Até mesmo a Heineken, que já nasceu com um posicionamento premium, está aumentando seu portfólio de artesanais. Em 2017, no mesmo ano em que adquiriu a Brasil Kirin (que possuía as marcas Baden ­Baden e Eisenbahn), a empresa também comprou a Lagunitas, cervejaria artesanal americana produtora do rótulo ao estilo IPA mais vendido do mundo.

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Desde então, a Lagunitas está sendo produzida em uma fábrica de Blumenau, em Santa Catarina, e distribuída para o Sul e o Sudeste. “A tendência é aumentar a participação desse tipo de cerveja em nosso portfólio.

Percebemos que o mercado de artesanais está amadurecendo e os consumidores estão experimentando mais”, afirma Eduardo Picarelli, diretor de marketing da linha Craft da Heineken no Brasil, divisão dedicada às marcas artesanais.

Segundo o executivo, a existência das cervejarias menores é vista com bons olhos pelos gigantes. “Elas contribuem com novidades para o setor, o que atrai o público. Enxergamos esses negócios como parceiros e acreditamos que haja espaço para todos”, afirma.

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Nem tudo é doce

Na prática, entretanto, a vida das artesanais tende a ser mais difícil do que a das concorrentes maiores. “Os grandes grupos conseguem isenções de impostos, como o ICMS, que as pequenas não conseguem, além de ter automação e economizar com a produção em escala”, afirma Carlo Bressiani, diretor-geral da Escola Superior de Cerveja e Malte (ESCM).

A opinião é compartilhada pelo empreendedor David Michelsohn, de 43 anos, que em 2013 abriu a Cervejaria Júpiter, em São Paulo. “Oferecer os mesmos incentivos fiscais e linhas de crédito equilibraria a briga e tornaria a competição mais saudável”, afirma.

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Formado em jornalismo, David era designer gráfico até se arriscar nesse ramo. “Comecei a fazer cerveja em casa, por hobby, mas me apaixonei”. Então David foi atrás de especialização: realizou cursos nas áreas de tecnologia cervejeira, administração de negócios e sommelier.

Antes de lançar a própria empresa, durante um mês ele trabalhou como aprendiz na Cervejaria Nacional, uma das mais antigas de São Paulo. “Esse estágio foi importante para entender como era o dia a dia em uma cervejaria. Aprendi desde limpeza de equipamentos até desenvolvimento de novas receitas”, afirma David.

Desde 2013, a Júpiter já lançou 40 rótulos diferentes e produz cerca de 7.000 litros por mês. A empresa também foi a primeira cervejaria cigana da capital paulista, ou seja, não tem fabricação própria e terceiriza toda a produção. “Optamos por esse modelo por causa da legislação, que na época não permitia o processo de envase na cidade de São Paulo, mas também para reduzir os custos”, diz David.

A estratégia da Júpiter tem razão de ser. O investimento para quem vai montar uma linha de produção, mesmo que pequena (entre 3.000 e 10.000 litros por mês), é alto: varia de 1 milhão a 1,5 milhão de reais. Além disso, os empreendedores contam com margens apertadas e necessidade de bastante capital de giro.

Por fim, ainda é preciso se diferenciar para convencer os consumidores a testar algo novo. “Ainda existe espaço para cervejas com características brasileiras, sabores regionais, variações na graduação alcoólica e bebidas mais leves”, completa Mayra, do Sebrae.

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David Michelsohn, dono da Cervejaria Júpiter: o hobby de produzir bebidas em casa se transformou em negócio | Foto: Omar Paixão ()

Há vagas

Além de ser uma chance de em­preender, também há vagas para quem quer trilhar uma carreira no ramo. Um exemplo disso é que, em 2018, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), das 1.757 oportunidades geradas por cervejarias, 951 foram abertas em empresas de pequeno porte, o que corresponde a 54% da oferta de emprego.

Um dos dilemas, entretanto, é que o boom dos negócios não foi acompanhado pela oferta de cursos e capacitações na área. “Países como Alemanha e Estados Unidos, por exemplo, possuem formações mais sólidas. Por isso, inclusive, a certificação internacional é um diferencial na hora de contratar”, explica Alan Kuhar, professor de marketing no curso de administração da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM)

Uma das profissões mais requisitadas é a de mestre cervejeiro, que pode ganhar até 40.000 reais. (Veja outras carreiras em alta no quadro ao lado, “Mercado quente”.) “Esse profissional vai garantir a qualidade e comandar todo o processo de fabricação, o que é crucial para as microcervejarias. Do contrário, elas perdem espaço para as concorrentes”, afirma Alan.

Entre as competências para trabalhar no mercado estão capacidade de interagir com públicos diferentes, visão estratégica de mercado e criatividade para testar receitas. “Passagens na área comercial de cervejarias, gestão de cadeias de produção, distribuição e venda de bebidas também são diferenciais”, completa Alan.

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O caso Backer

No final do ano passado um episódio dramático sacudiu o setor. Em dezembro de 2019, 55 lotes produzidos pela Cervejaria Backer, de Belo Horizonte (MG), foram contaminados por substâncias químicas. Até o fechamento desta reportagem, seis pessoas haviam morrido e outras 30 apresentavam sinais de intoxicação após consumir as marcas da companhia.

De acordo com a investigação da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, que ainda não havia sido concluída, os lotes foram contaminados pelos componentes dietilenoglicol e monoetilenoglicol, substâncias usadas por algumas produtoras para resfriamento das cervejas. A Backer, entretanto, negava o uso de dietilenoglicol no processo de fabricação e suspeitava de fraude por parte de um ex-funcionário.

Com um crescimento de 50% nos últimos dois anos, a Backer produzia 800.000 litros por mês, tinha 350 funcionários e faturamento mensal estimado em 7 milhões de reais. O tamanho da empresa — considerada a maior cervejaria artesanal em volume de vendas do país — e a repercussão do caso levantaram dúvidas quanto ao impacto que o episódio teria na credibilidade do mercado de artesanais.

Mas os especialistas são unânimes em dizer que se trata de um fato isolado. “Em conversas com vários empreendedores percebemos que as vendas não foram afetadas em outras regiões. Houve apenas uma queda localizada em Minas Gerais”, afirma Mayra, do Sebrae. A torcida é para que as previsões se concluam.

Isso porque o mercado de artesanais ainda guarda bastante potencial a ser explorado. Por aqui, esses negócios respondem por aproximadamente 2,5% do segmento, de acordo com dados na Abracerva. Já nos Estados Unidos, por exemplo, a participação das artesanais é de 13%.

Para que o crescimento aconteça, entretanto, Carlo Bressiani, da ESCM, aconselha que os empreendedores se preocupem em atingir o consumidor comum e não foquem apenas a clientela especializada. “É o grande público que vai sustentar o negócio. Por isso, não podemos gourmetizar a cerveja: ela precisa continuar sendo uma bebida popular”, afirma. Se seguirmos nesse caminho, quem sabe um dia as IPAs substituam as pilsens no churrasco de domingo?


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